D.H. Machado
Na origem do tempo tudo o que era,
Ocupando todo o espaço imaginável,
Era ainda invisível ao olhar comum.
O tempo tinha em si apenas a ideia de tempo,
E toda a sucessão de acontecimentos
É pura especulação do que pode ter sido.
No início tudo era indistinguível,
Tudo era uno e crítico e irredutível.
A matéria que ocupa o espaço
E o espaço que se prolonga no tempo,
Eram apenas um sonho do que veio a ser,
Criando uma impressão da realidade, abstraído
De tudo o que é tangível e insubstituível.
Mas na minha memória ecoam os teus passos
Os passos que deixaste cravados no soalho,
Saltitando pelo corredor largo da velha casa
E que deram origem a tudo o que é e será
Espreito pelo canto do olho, por cima do ombro,
Mas apenas vejo o silêncio do eco que findou.
Não há vestígios da tua passagem pelo jardim,
As flores permanecem imóveis, distantes
Dos dias ventosos que nos visitavam à meia tarde,
Enquanto prostrados no langor erecto do verde coxim.
Tenho presente a melodia da tua voz,
Os poemas lidos ao redor da mesa
E os que me segredavas quando estávamos a sós.
Ouço o tilintar tímido da tua língua no céu da boca,
Como uma sineta que atiça a noite lenta e oca.
Irei esperar por ti, ignorando a intenção do tempo,
Ignorando o vento que sopra lesto e lento,
Aceitando que tudo tem um antes e um depois,
Como se o teu sorriso fosse apenas uma memória
Que não obedece a um critério mensurável.
Irei esperar por ti junto às ruínas que precedem a noite,
Sentir o refúgio que cinge o relógio ao constante tique taque.
Esperar que os números assumam a forma mais comum
e cumpram a ordem como nas páginas do velho almanaque
Esta humanidade tão tolera o gentil toque da liberdade
E tudo o que parece existir é a percepção de uma certa vaidade.
A vida revela-se como um mostruário de curiosidades,
Que descansa a meia luz entre o passado e o presente.
Espero por ti, ouço o murmulho da água corrente
E o leve arfar do desespero que antecipa a queda das folhas.
“Toc, toc, toc”, repete o papa-figos, sem se apressar,
distraindo as cerejas com o seu canto aflautado.
Espero, espero, e afugento os que ousam se aproximar
Trespassando o espaço e o tempo passado.
Vivo circunscrito ao ar que sufoca e me impede de gritar,
desdobam-se as pregas que rendilham a tempestade
e acordam os mortos que ninguém ousa querer visitar.