A UM ZEUS DESCONHECIDO

Carlos Alberto Osório

NA DOCA DOS SUBMARINOS, às 13h30, hora de Lisboa, embarca rumo a Orão, porto argelino, a bordo de um Zeus feito cargueiro, para só voltar um dia, num Dão, à terra que não se vê do mar e que o viu nascer 65 anos antes. Naquela fria tarde de 17 de dezembro de 1925 aquecem-lhe o momento da despedida os amigos João de Barros, o Columbano, o filho do João de Deus, o Viana de Carvalho, o Pedro Bordalo Pinheiro, outros vultos políticos, militares, jornalistas, várias agremiações desportivas e fotógrafos que perfazem quase uma centena. Não disfarça uma alegria sincera ao cumprimentar sem protocolos, um por um, os presentes mais íntimos e mais próximos. Das mãos da filha de Viana do Carvalho recebe um ramo de rosas ornadas de violetas. Destas, uma aconchega à sua lapela.

O Chefe de Estado cessante responde com brevidade afável a perguntas estagiárias dos jornalistas: «Quando regressa?». Não sabe. «Os 15 anos de cativeiro e trabalho em Londres e Lisboa requerem muito descanso»… logo segue doca fora. Os fotógrafos abrem os diafragmas do tempo e Teixeira Gomes virando-se para um deles vaticina um outro tempo numa enigmática frase: «Nesta pequena máquina está o futuro do mundo».

Quase um ano depois desta partida surpreendente, recorda em Pisa numa carta que escreve a António Patrício: “Não foi em sonhos, como o profeta que um anjo transportou de babilónia à terra dos seus desejos, mas a bordo de um simples vapor holandês, de carga, que eu, ao soltar-me da presidência, me lancei sobre as almejadas plagas africanas, iniciando aí, mau grado a velhice, esta grande primavera de liberdade e felicidade, que ainda agora dura. Chamava-se Zeus esse navio, e, supersticioso como um livre-pensador, augurei muito bem de uma viagem começada sob a égide do Rei do Olimpo. Não me falhou até aqui o prognóstico, e presumo que a própria Vénus foi industriada para acudir à minha caducidade, num ou noutro lance de maior provação”.

fundeará ao largo da baía de Setúbal para carregamento de novas mercadorias. Teixeira Gomes, a caminho de Orão, evadido da “gaiola dourada”, não sabe ainda que uma tormenta o aguarda ao largo do estuário sadino e que adiará a partida por mais três dias, proporcionando-lhe uma visita desportiva completamente inesperada. Conta-nos O Setubalense que Teixeira Gomes voltara à cidade onde há pouco mais de um ano reunira à sua volta perto de 200 convivas num banquete presidencial. Desta feita, apenas tivera a visita do seu amigo e conterrâneo Jerónimo Jacob, negociante em Setúbal, e segundo o biógrafo Joaquim Nunes, a surpresa da equipa de futebol da sua cidade nova que ali se encontrava para disputar um matchcom o Vitória Futebol Clube. após o jogo, o team do Portimonense aproxima-se olimpicamente do zeus que aguardava o fim da procela. Era uma desportiva despedida do seu presidente depois de um desastroso 12-0. Apesar da dúzia de golos sem resposta, os moços foram recebidos a bordo com visível satisfação, acompanhados por António Alvo, outro negociante da sua terra que mesmo ali aproveitou para negociar  uma “caldeirinha existente nos pegos verdes”.

Amainada a tormenta, Jacob Willem, um capitão em estado de graça epitalâmica, levará o seu Zeus sobre Poseidon, por ora apaziguado, até Orão.

Como um prisioneiro liberto, após longa pena, Teixeira Gomes transporta na sua inseparável “never-break” uma alegria inquebrável e segue viagem por Tlemcen, Taza, Fez, Mequinez até aportar em Argel, antes de seguir para a Tunísia e depois Itália… Sente-se continuamente um outro desconhecido Zeus a regressar ao seu Olimpo, saudável e prosperamente feliz.

Milhares de milhas mais tarde, num bizarro castigo de hubrys, o cargueiro holandês com nome do deus do raio coruscante será vendido como escravo e ganhará outro nome: Boudjamel. Passará a ser o “camelo”, assim dito em árabe, de aço das águas mediterrânicas ao serviço de beranger & giannoni entre Marselha e Orão.

Em 9 de Novembro de 1942, Boudjamel será apresado por Mussolini e em plena Grande Guerra afundado pela aviação britânica, no seu porto de destino. Os destroços daquele que nasceu com nome divino foram reflutuados e desmantelados seis anos mais tarde