UM ELEFANTE SOLITÁRIO DANÇA COM ESTRELAS

João B. Ventura

Cheguei tarde aos livros do Luís Sarmento, mas não tão tarde que isso me impossibilite de seguir-lhe o rasto que vai traçando on the road na sua prosa selvagem que mistura a autobiografia, o testemunho, a crónica, o ensaio, a ficção narrativa, o manifesto político numa obra que, livro a livro, não cessa de nos surpreender com uma escrita avassaladora que, em sucessivas explosões de criatividade, apostrofa contra os cânones de toda a espécie, literários, sociais e políticos, que procuram conter a Liberdade.  

Nascido em Lisboa, no tempo em que a “dor ainda andava à volta do silêncio” (frag. 38, p. 129), sob “um céu de acidentes previsíveis como uma carta astrológica fatal”, dezoito anos mais tarde, num dia de Abril de 1974, igual a esta hora com solavancos de curiosidade (…), levantou-se no centro da noite e foi ao espelho observar como lhe ficava bem a cor da liberdade. (…) Iluminou[-se-lhe] a mão, um ácido nos miolos e a luz plural do prazer (frag. 5, p. 24) (…) nas intermitências da lucidez” (frag. 4, p. 20) e decidiu ser escritor. Um ano depois publicou o seu primeiro livro, A idade do fogo. Pelo caminho, “houve muitos resultados imprevistos”. Foi jornalista, tradutor, realizador de televisão. “Um lápis estabeleceu[-lhe] o fio de ariadne” (frag. 29, p. 104) que o trouxe hoje até aqui como metáfora de si mesmo, ou não fosse o Luís Sarmento o grande livro contínuo que vai escrevendo sem parar.

O meu primeiro encontro com ele foi numa viagem ascendente, on the rail, entre Portimão e Lisboa, o Luís em trip poética sem sair do jardim da sua casa, em Almada Velha, espécie de Interzone pessoal, “cria[ndo] literatura a partir do inusitado” (frag. 27, p. 95), e eu, como um excêntrico viajante, lendo num comboio enquanto em toda a carruagem os outros passageiros dedilhavam no vazio dos ecrãs dos telemóveis. 

“Ler não pode ser uma anomalia dos tempos hipermodernos”, lembro-me de o ouvir dizer. Pacto efémero que se eternizou na memória daquele instante em que, na carruagem-bar que ia deslizando sobre os carris de ferro, tive uma visão de Rimbaud e bebi uma cerveja pensando em Cesariny enquanto o comboio cavalgava a planície alentejana.  

Na viagem descendente, entre Lisboa e Portimão, voltei a escapar-me para o livro, Beat, e no fragmento 59, o Luís confessou-me: “Em 1974, a Europa estava tão fechada para mim. O único caminho que me apontavam era o oceano com destino à guerra em África (…). Vi nos mapas os países europeus como planetas alinhados e quis partir e transpor atmosferas de prisão para a alienação da surpresa e do conhecimento”. 

Respondi-lhe: “A tua Europa, Luís, foi também a minha Europa cheia de vias férreas por desvendar. E como tu, “saltimbanco do mundo” (frag. 24, p. 83), parti como vagabundo de ideias com a mochila da esperança às costas. E em Paris, como Camus, descobri que no mais profundo inverno há sempre um Verão invencível. 

Lembras-te Luís, “tudo começara como um acto revolucionário da esperança. Foram convocadas multidões com flores e flautas. (…) Nesse tempo, pensava-se na substância da liberdade. Tantas décadas depois resta-te o que és no que escreves. Nada sobra para além da ficção do que fora expectativa num futuro que nunca existiu. Sim, houve uma revolução multicolorida até ao dia em que despertaram dos berços os netos neoliberais” (frag. 38, p. 129).

Ficámos amigos para sempre, como aqueles dois compinchas, o Sal Paradise e o Dean Moriarty, que estavam à boleia num troço da Route 69, a mítica estrada que Jack Kerouac ficcionou num rolo de papel (e que tu percorreste em Beat), e decidiram que a partir daquele lugar mudariam não só de assunto como de estilo de conversa de cada vez que cruzassem um candeeiro, deixando “a mente saltar ao acaso do galho ao pássaro”. 

Desde esse momento tenho saltado de livro em livro do Luís Sarmento, ora olhando para trás, para aqueles que ele publicou antes de Beat, como o Rouge, ora olhando para os que publicou depois, como Commedia, ora para diante, para aqueles que ainda haverá de publicar, como Faca e Detergente, perseguindo uma espécie de “indeterminação quântica” que, afinal, não está perdida para a literatura. 

Por isso, embora tenha chegado tarde aos seus livros, mas não tão demasiado tarde ao autor, e habilitado como estou por Pierre Bayard a falar de livros que não li, e seguindo o conselho de Oscar Wilde que, para não se deixar influenciar, nunca lia um livro sobre o qual tivesse de escrever uma crítica, arrisquei ensaiar uma crónica sobre o livro antes mesmo dele me chegar às mãos, o que só veio a acontecer quando, no passado mês, o livro foi impresso e lançado em Lisboa, no Teatro da Comuna, para cima de uma imensa plateia em levitação, não devido a quaisquer efeitos do ácido lisérgico que lá não havia, mas elevada sobre as mesas pelas intermitências ácidas de uma prosa que entreabre as portas da percepção.

Foi sem medo de fracassar naquele intento, decidido a escrever sobre um livro que ainda não tinha lido, que, numa noite de estrelas, pus a rodar o disco Alabama Songs dos Doors, e enquanto Jim Morrison ia cantando os versos “Well show me the way / To the next whiskey bar/ Oh don’t ask why / Oh don’t ask why / Show me the way / To the next whiskey bar “(frag. 43. p. 149), li no azul eléctrico do ecrã os fragmentos de Ácido que, imitando um folhetim expressionista, o Luís Sarmento lançara para o éter da sua página de Facebook.

“O ácido abr[indo] as portas da observação como um leque em sua inaugural função de lupa associada à transgressão psicadélica” (frag. 43, p. 147).

E à medida que ia lendo aqueles fragmentos “feitos de intermitências e sobressaltos” (frag. 20, p. 69) reflectidos no palimpsesto do ecrã, também “a mim me pertencia a psicadélica dimensão de uma prosa incandescente que queima na fogueira os “predadores que vestem democracias fantasiadas de obsoletas figuras de ditaduras arcaicas”.  

Os fragmentos que li, não mais que meia dúzia, pertencem a este livro editado pela The Poets and Dragons Society, liberta não a dietilamida do ácido lisérgico, a substância sintética produzida em laboratório, vulgarmente conhecida por LSD-25, e que provoca alucinações, delírios e ilusões nos consumidores, mas uma prosa ácida, expressionista e abstracta, à maneira da “pintura de acção” desenvolvida pelo artista americano Jackson Pollock durante a década de 1940.  

Porém, como constatei, ao ler, finalmente, os 50 fragmentos “desvairados” que compõem o livro, ao invés dos pincéis e bastões com que Pollock aplicava espontaneamente a tinta sobre as telas, o que o Luís Sarmento aplica, solta do fundo de si para o éter, e a seguir para o papel, é um delírio de palavras e rêveries combinadas num “texto desenhado num contexto de lucidez com origem numa alucinação”, estabelendo “o zénite do prazer”.

Não se julgue, porém, que este livro é apenas uma imaginativa composição construída com vocábulos inventados por uma mente delirante e outros que a censura onírica rasurou (frag. 25, p. 89), “inúmeras combinatórias de frases, construções parodoxais, metáforas de efeito, oferecendo possibilidades de estruturas dinâmicas imprevistas” (frag. 28, p. 100) e antonomásias explosivas que deflagram na imprevisibilidade do texto tornando-o ilegível.

Não, a realidade do Luís Sarmento enquanto “viajante de [trips literárias] controladas é produzir protótipos criativos” (frag. 28. pp. 100-101), “festejando a singularidade da palavra e da sua potência ácida como instrumento luminoso dos cronistas” (frag. 13, p. 47) contra os males do mundo. 

Um turbilhão mental labiríntico de um viciado na literatura, habitando uma Interzone pessoal, onde junta crítica social corrosiva com alucinação poética numa explosão de criatividade que rompe os limites da linguagem através de uma escrita fragmentária que dinamita os esquemas da narrativa linear, apostrofando contra os cânones da cultura autorizada. 

Um “inventário subterrâneo da agressão (…) alimentando os êxtases judeus, cristãos, muçulmanos (…), nutrindo a irracionalidade de adorarem o que só o medo faz existir”. Hipócritas, impostores, bajuladores, saqueadores, colaboracionistas das crónicas oficiais, comentadores encartados, especuladores de massas informes, espectadores obscenos das desgraças alheias, fetichistas dos bons lugares, maldizentes profissionais, malfeitores de toda a espécie, belicistas, todos ardendo na fogueira da denúncia destes fragmentos agora reunidos num livro destemido.  

“Ácido: bad trip é assim”.

“Um diagnóstico escorpiónico [sobre] a peçonha cancerígena que se alastra, a metástase do sabujo social, o vírus transformista do traidor, que alimenta a espúria sociedade secreta que faz mover os senhores das nações poluentes”.

E nas intermitências da crítica corrosiva, também um humor ácido contra os lugares-comuns e clichés proverbiais proclamados pelos papa-açordas citadinos em ritmo quotidiano minimalista repetitivo. 

“Ácido e debilidade não promovem uma boa relação. Esqueçamos a debilidade” (frag. 16, p. 55).

“O caos é a fonte poética da sublevação” – já eu havia lido em Beat. Mas um “caos interior [capaz de, à maneira do Zaratustra de Nietzsche], gerar uma estrela dançante”. Ou, mais caótico ainda, como eu haveria de ler, ver, no fragmento 40, um caos capaz de gerar a dança de um elefante com as estrelas.

Uma tripcontrolada que se oferece à leitura como uma provocação de estímulos desafiando os leitores a cruzar as portas da “percepção espiritual e sobrenatural da literatura” (frag. 28, p. 101) e a galopar como raiders on the storm sem necessidade dos estímulos alucinógénicos experimentada por Aldous Huxley.

Foi assim que, sem sair do meu escritório, cruzei as Portas da Percepção, e experimentei uma “visão puramente estética”, “sacramental”, sob o efeito onírico de uma prosa psicadélica. 

E como nos versos de William Blake, “tudo [foi] surgindo (…) tal como era, é: infinito”. 

Alucinado pela prosa ácida, mergulhado no caos, também eu vi “um elefante solitário [dançando] com estrelas no centro da noite enquanto os meteoritos atravessa[vam] os camarotes celestiais. Sem passaportes divinos. Um elefante solitário dançando na paisagem pacífica [que não sabia] que no outro lado do mundo uma outra paisagem está interdita à dança. São minas. São bombas. São drones” (frag. 40, p. 145).

“A “atoarda beligerante” que emudece o mundo e me faz pensar na terra devastada da Ucrânia e de Gaza. “A pólvora como estupefaciente [daqueles que] só sabem dançar com a morte” (frag. 40, p. 135). “Os comendadores da nova ordem de Golem que injectam o veneno mágico que transforma almas em robots e mudos disparam fogos ctonianos contras periféricos Gnomos que, invisíveis, levantam hordas de resistência” (frag. 19, p. 66).

“Cuidado, tudo é perigoso, mas não igualmente nem ao mesmo tempo”, ter-me-ia avisado Walter Benjamin se, como o seu anjo da história, tivesse naquela noite entrado pela janela do meu “whisky-bar” caseiro, onde alucinado pela prosa ácida do Luís Sarmento e pelo canto de Jim Morrison embarquei numa trip poética. 

A acidez de um livro como contraponto da exaltação e “sem iridescências argumentativas é o que [me] importava [naquele momento] mesmo no último sopro da exaustão”.  

E é o que me importa, e o que vos deverá importar também quando cruzarem as Portas da Percepção que dão para a teia de fragmentos tão laboriosamente entrelaçados para formarem a tessitura ácida deste livro que nunca terminará, porque – é assim que o Luís trabalha -, o último fragmento haverá de dar início ao primeiro fragmento de Facae o último fragmento deste ao primeiro fragmento de Detergente, e assim, indefinidamente, tripando na consciência do sonho com a perspicuidade do ácido literário. “Cria[ndo] literatura a partir do inusitado” (frag. 27, p. 95).

“Escrever é ter o instinto do infinito, do inacabável (…) é o que nunca acaba (…) Quando se acaba continua-se a escrever na imaginação dos outros» – lembro-me de ter lido em Beat. Com o Luís, estamos sempre a partir, a partir sempre numa viagem sem fim e sem crenças que nos desviem do caminho. “E logo a primeira labareda de um fogo sem extinção possível no desejo pela repetência do dia seguinte” (frag. 15, p. 54).

“Luta. A vida dança”, dissera-lhe a mãe do alto de um trapézio voador”.

“O texto, como este, feito de intermitências e sobressaltos”. “Trama. Teia. Texto. Textura. Talvez um archote” – haverei de ler em Detergente, outro livro seu por vir.

Nisto reside a beleza de Ácido, um livro-archote que, num festim de linguagem, com uma pulsão poética detonadora da surpresa da palavra seguinte, da frase seguinte, do fragmento seguinte, ora denuncia a ignomínia ora vaticina a esperança. Uma desassombrada fusão entre ética e estética com um furor político desestabilizador tão necessário “nesta grande época” que prenuncia “os últimos dias da humanidade”, como diria Karl Kraus se ainda por cá andasse. É isto que se pede à literatura em tempos de indigência e de emergência. 

Alheio ao delírio das bombas que devastam o mundo, o Luís “acompanha um elefante dança[ndo] solitário com estrelas porque, sem crenças, pressente o céu que lhe ilumina o bailado. A insuportável leveza” (frag. 40, p. 137).

A Liberdade [que eu já havia experimentado noutras trips poéticas do Luís, revel[ou]-se-me na textura de uma prosa que não obedece às leis da gravidade, antes se eleva, dança, antes de ser lançada para o papel tal como Pollock lançava a tinta para a tela.  

Uma escrita de acção que transporta consigo a marca do autor, “uma marca que não se pode vencer: a marca interior”, como me lembro de ter lido em The naked lunch, o mítico romance que William S. Burroughs escreveu durante a sua estada numa fantasmagórica “Interzone”, localizada em Tânger, e que, na década de 1950, influenciou a chamada “Beat Generation” – Ginsberg, Kerouac, Ferlinghetti,  Diana de Prima,  Gregory Corso,  William Carlos Williams e Jack Hirschman – que o Luís homenageou quando me levou naquela “trip” on the road, e que prossegue agora nesta descida à sua Interzone mais profunda.  

Rouge, Beat, Commedia e agora Ácido, Facae Detergente que hão de chegar, lidos uns e outros ainda não, são livros de uma prosa indomável, libertária, cuja unidade resulta da justaposição e do entrelaçamento de fragmentos que se confundem entre si. “A sua cor dá-nos a substância do real” (frag. 32, p. 109).

Um poema contínuo em prosa multicolorida, estilhaçando fronteiras do género, desestabilizando a linguagem. Rugindo do fundo da alma indómita do Luís para nos fazer cavalgar na tempestade que avassala o mundo.  

Riders on the storm / Riders on the storm / Into this house, we’re born / Into this world, we’re thrown / Like a dog without a bone…”, cantava Jim Morrison enquanto eu lia os últimos fragmentos do livro.

Li, “leio meia-noite na página iluminada por Júpiter e logo o futuro se abre ao poema interdito”. No meu “sétimo andar, o terraço em si é um convite à estrofe esquecida na memória ou o ponto de partida para a loucura de um tapete voador” (frag. 12, p. 43).

Vou à janela surrealista do meu andar e espreito a noite estrelada lá fora. E enquanto no outro lado do mundo “os extasiados arquitectam infernos para os seus funerais. Onde orações campaniformes emudecem a dor e o clamor dos escombros ao longe” na terra devastada da Ucrânia e de Gaza, “alheio ao delírio das bombas, [vejo] um elefante dançando solitário com estrelas porque, sem crenças, pressente o céu que lhe ilumina o bailado” (frag. 40, p. 135).

E penso: “a esperança é uma bomba que deflaga no exacto instante da angústia” (frag. 12, p.44).