António Cabrita

Começa assim um texto de Jacques Darras sobre o poeta escocês Hugh MacDiarmid: «Há suavidade e aspereza na Escócia. Vê-se primeiro a aspereza. Está no relevo. As montanhas são esculpidas em rocha do Jurássico. A erosão ao longo dos milénios desnudou-as e aplanou-as, dando-lhes formas desajeitadas de animais que se estendem sobre lagos ou vales profundos onde correm riachos avermelhados. A pedra está em todo o lado (…) Onde está a suavidade desta paisagem? Na cor, entre o verde da erva que o vento do mar achata universalmente contra o azul do mar.»
Leio este inesperado Aye, de Carlos Oliveira Santos e sinto, felizmente, esta mesma alternância: suavidade, aspereza, muito verde e o azul, que às vezes o vento parece afastar para longe ou aproximar, palpitante.Mas, e o enigmático título: Aye? Simples como água, explica-se na nota introdutória do autor: «Aye é um arcaísmo (…) que persistiu na Escócia, nomeadamente com o significado de sim. Sim, este livro pretende ser um tributo à Escócia e às suas culturas». De facto, lê-se e imediatamente se impõe a pergunta: onde esteve escondido este poeta da diáspora escocesa? É o melhor elogio que se lhe pode dar, porque acerta absolutamente na mouche do que se propôs cumprir.
Pior, estes Poemas Escoceses surpreendem desde a primeira leitura e emerge a pergunta, “Como é que se chegou a esta limpeza de processos?” São poemas altamente elaborados mas que parecem simples. Ou antes, não são simples, são talhados por uma longa rodagem na vida e no conhecimento da prosódia e que deixaram de complicar o que é, como se compusessem adágios ou se tecessem no mais modesto sopro, nas últimas palavras, de um “moribundo”, com a urgência e o despojamento que isso tem. Versos que em vez de brilhos, maduros, já só visam um pouco de polpa e de verdade, ainda que maculada pelo humor e esparsa como a relva junto à laje que pisca o olho à nossa inflamada precaridade. Poemas que se engrenam com essa singeleza de propósitos que prenunciava a razão suficiente que augurou Leibniz e que o romântico Keats, numa carta que o autor cita, selou: «O que é criativo deve criar-se a si próprio». É o que se esplende nestes Poemas Escoceses: uma subtileza em filigrana que oculta a sua densidade na leveza, ou na propriedade lúdica, da expressão. Como em muitos momentos foi mister do Cesariny. Mesmo até no seu ecletismo estilístico, porque como previne COS, este livro tece-se naquilo a que ele chama «regressos ao que a modernidade (e, nela, esse século XX, que não começou em 1 de Janeiro de 1900, nem acabou em 31 de Dezembro de 1999) foi tendo de rupturas poéticas, libertadoras da linguagem estética», ou seja, o autor não quis renunciar a nada dos ganhos formais e explicitamente decidiu continuar «a afirmar o primado essencial da inovação poética moderna, da aventura estética, da originalidade, de uma poesia que persiste na invenção de Some-se a isto, neste livro, dezenas formas de linguagem e na busca de expres- de traduções dos poetas escoceses, que na são do indizível, do incompreendido». Tudo verdade são transcriações, mas cumprem o o que ficou “fora de moda”, mas que a ele o objectivo de na língua de chegada se darem fizeram mergulhar em “investigações” sobre a ler como criaturas vivas e não como anfía língua e as suas formas e moldar o verso bios mortos e mergulhados em formol.
desde as baladasEste livro é o sedimento de um contacà maneira de a vários poemas concretistas, to que Carlos Oliveira Santos teve com a ou aos riscos escoceses (apropriações),exercí- Escócia, desde que nos finais do século pascios neodadás (o autor pega em prosaicas sado foi convidado para escrever um livro páginas de outros e procede a rasuras e sobre a história de uma empresa de têxteis cortes até evidenciar-se o poema que aí se escocesa com uma filial no Porto – e essa “ocultava”, como se fora um Miguel Ân- oportunidade produziu uma imprevista osgelo munido de escopro e uma visão em mose identitária a que o que autor não quis infravermelhos – método que aplica sobre furtar-se e que, mercê desse contacto, calautores escoceses mas também à portugue- deou num entendimento diferente quanto sa Ana Teresa Pereira e ao seu Inverness). à pertinência poética e à sua imersão no No fundo, Carlos Oliveira Santos relembra real. que a poesia brota de uma fonte colectiva O livro tem cinco andamentos: no cae que, humildemente, a literatura é uma pítulo Meus lavram-se os poemas, os próexaltante consciência de um poroso inaca- prios, de Carlos Oliveira Santos, a partir bamento, pelo qual se retomam e matizam da página 103 seguem-se-lhe os Scottishas velhas respostas com novas perguntas; o enlightenments (transfusões), onde se compique enferma de cretinismo o sistema das lam inúmeras transcriações das figuras gedatações, até pelo motivo mais inescapável: nealógicas do Renascimento Escocês (dos séculos XVII ao XIX); depois alinham-se os chamados Riscos escoceses, apropriações:aí o autor assume como próprio o que outros nele inocularam, comprometendo-se com o dever moral de converter essa tradição em algo que soe a novo; no capítulo quarto, com os Scottish independence constructs, realiza uma série de poemas concretistas e visuais a partir dos signos que tornam a Escócia, mais do que uma denominação, uma identidade e uma resistência (à sombra do imperialismo inglês); e por fim, no capítulo e dos outros, reúne novas transcriações, com as mesmas invariantescontinuam a assolar destaque para os pré-românticos e para os os homens, os mesmos dramas, as mesmas quinze poemas de Robert Burns, que mosaporias, a irredutibilidade da morte, o dese- tram a ductilidade e o perfume do grande jo, a ambição de ser ao menos digno face à clássico escocês, capaz do mais delicado escarpa do destino, os mesmos nove orifí- poema lírico e, em contraste, da jocosida- cios do corpo, etc. de mais rotunda; como no A Uma Pulga, de que transcrevemos um excerto:
(…)
xô daqui! vai p’ra corpo de pedinte, onde possas rastejar, sugar e alambazar por entre os da tua corja, dez ou vinte, como em belo lupanar onde pente de osso não penetre e te sirva de retrete.
olha! já nem sequer te vejo debaixo desse corpete airado, mas só ficarás sem despejo quando içares o teu reinado ao topo dessa conquista, ao chapéu, que linda vista!
eh lá, eis que mostras o focinho reconchudo e vermelhudo a brilhar como um toucinho, qual picante cabeludo que comido, em euforia, até o rabo te limparia.
não me espantaria nada ver-te em cabeça de velha ou num puto, esparramada, em seu colete de ovelha, mas nesta Lunardi bela, como te atreves, cadela?!
(…)
E a habilidade com que o tradutor se dá nos variados registos é decididamente uma marca do seu próprio ecletismo.
Um outro aspecto merece ser destacado nos poemas de Carlos Oliveira Santos. Num prefácio célebre com que prefaciou uma antologia onde procurou reunir poemas que honrassem o objecto e não o sujeito, Czeslaw Milosz, lembrou como o mundo é uma confluência de coisas que preservam a sua “talidade” ― conceito que o poeta polaco foi buscar ao budismo zen e que designa a «qualidade de uma coisa ser aquilo que é» ―, i. é, que o mundo objectivo existe e não é apenas o fiapo de uma subjectividade narcisicamente empolada nem um “quesito” intelectual. Com a mesma humilde, Carlos Oliveira Santos «louva as coisas porque são e acontecem» (Milosz) e nos colocam sob influência com o idêntico fervor dos elementos que, naturais, nos sensibilizam. Ora veja-se, este maravilhoso poema:
CARÍCIAS
ah, ser um tweed, bem dobrado,
do Campbell’s of Beauly,
exposto às carícias de quem passa.
esboroar-me nas ruínas do priorado,
aos poucos e poucos, pelos séculos,
exposto às carícias de quem vê.
contornar os campos, repletos de flores,
pelo Bridgend Burn, manto de frescura,
exposto às carícias de quem sente.
falarem de mim com respeito,
frase a frase, letra a letra,
exposto às carícias de quem lê
Muitos e excelentes versos navegam neste livro de umas singelas trezentas e trinta e quatro páginas e que, apesar de ter um elogioso prefácio de um relevante escritor e linguista escocês, Billy Kay, não passou no crivo da douta crítica portuguesa, que o reduziu ao silêncio.
E como esta nota pretende, tão somente, ser uma chamada de atenção para este livro singular no seio da recente poesia portuguesa – um estudo ficará para outra oportunidade – termino transcrevendo um poema que merecia estar em qualquer antologia da poesia portuguesa dos últimos quarenta anos:
falta um grão de areia
– falta um grão de areia, na praia! –
gritou Bruce
– falta o quê?
– um grão de areia!
– não pode ser…
contaram-se bem?
– contou-se.
– contaram-se várias vezes?
– contou-se.
– foi o vento!
– mas não houve vento desde a última
contagem…
– algum turista, que o levou?
– não pode ser, nenhum turista o faria
ou poderia tê-lo feito.
– mas falta um grão de areia…
Maggie MacEwan correu para a ravina
apontou os seus olhos de águia
gritou com todas as forças que tinha
e lá o viu o raio do grão de areia
andava enrolado com o mar
e talvez voltasse à praia
com a próxima maré
E quem não for sensível a esta inteligência lúdica é porque não está a ver um boi. Uma derradeira palavra para realçar a elegância gráfica deste livro, edita pela Âncora, um caso de bom gosto.