António Cabrita
NA RESSACA DA MORTE DE PAUL AUSTER resolvo ler um livro de entrevistas em que o autor de Trilogia de Nova Iorque sobrevoa extensamente os picos e os vales de quase toda a sua obra, relacionando-a paralelamente com certos aspectos biográficos, e chego ao capítulo dedicado a Mr. Vertigo, um livro que na época me empolgou e aí deparo com este excerto: «No fundo, não creio que careçamos de qualquer talento especial para que uma pessoa se eleve do solo e permaneça suspensa no ar. Temo-lo todos dentro – homens, mulheres e meninos – e, com suficiente esforço e concentração, todo o ser humano é capaz de duplicar as façanhas que eu realizei quando era Walt, o Menino Prodígio. Tens de aprender a deixar de ser tu mesmo. Aí é onde começa, e tudo o mais vem daí. Deves deixar-te evaporar. Deixar que os teus músculos se relaxem, respirar até que sentes que a tua alma sai de ti e, logo, fechar os olhos, É assim que se faz».
Como veremos adiante, encontro aqui bastantes afinidades com o pensamento que subjaz a Kenneth White, autor que já me havia inseminado as ressonâncias que me fascinaram em Mr. Vertigo, cujo personagem, depreendo-o agora, desenhava a figura de um arquétipo e seria um elemento-chave numa constelação, digamos, constituída por intimoratos «levitadores» culturais e com quem me sentia afim.
Mas o melhor é verificarmos as reentrâncias dessa orla a todas as geografias.
Defendia Nietzsche que a missão do “filósofo-artista”, figura que o galvanizava e de que se sentia o primeiro exemplo, era «transformar a vida de tal modo que esta se formule a si mesmo».
Hipótese espantosa, digna de um ser em levitação (apesar do seu peso), e que parece ecoar em Wallace Stevens para quem «o poeta é a transparência dos lugares» (um levitador já despojado do seu lastro de sombra), e ressoa ainda, por afinidade, no que o escultor Richard Long colocava como mira do seu trabalho: «a arte de não pesar». Hoje diríamos: de não deixar pegada ecológica; mas é mais do que isso.
Estes três testemunhos de gente para quem o acto de criação tem sobretudo um carácter receptivo, funcionando o homem neste prisma como uma espécie de antena da terra e não como o dominador que lhe molda a feição, apontam para uma genealogia espiritual e trazemo-la à liça para falar de um dos seus arautos mais consequentes e esclarecidos: o poeta-andarilho e pensador Kenneth White, que fez do nomadismo intelectual («a propensão à objectividade, que de tudo se alimenta») um propósito para a sua vida e que estabeleceu um novo movimento poético-antropológico, a Geopoética.
O primeiro livro deste poeta escocês em que, acidentalmente, tropecei, foi o instigante A Estrada Azul («Remontar aos princípios… Os princípios aqui na estrada azul são elementares, radicais e extremos. Os seus nomes são pedra, vento, chuva, neve e luz.»), que a Relógio d’Água editou em 1983 e que terá sido um fiasco, dado ter continuado a comprá-lo todos os anos na Feira do Livro em promoção, para oferecer a amigos, e a editora nunca mais se ter aventurado a editar outro livro do autor. É inexplicável, pois em França o livro teve merecidamente o Prémio Médicis Étrangerdesse ano, sendo um muito desempoeirado livro de viagens ao Labrador e um bom exemplo do subgénero a que White almejava com a sua noção de waybook/ voyage-voyance; a qual se define por uma prosa que mescla o itinerário e iniciação, como nas viagens iniciáticas de algumas narrativas do romantismo: «Narrativas em que a noção de viagem é complementada pela de via (uma linha para a vida) e de ver (perceber um outro espaço, abrir outras dimensões)» (White: 1989).
Leia-se, entretanto, este excerto de Estrada Azul:
«(…) ainda há um longo caminho a percorrer. Que tipo de caminho?
Spengler (que eu lia há muito tempo, nos tempos subterrâneos de Glasgow) fala de três caminhos: o caminho clássico, que se agarra ao presente e ao próximo; o caminho romântico, que perscruta o horizonte mais longínquo; e o caminho chinês, que consiste simplesmente em vaguear por aqui e por ali, sem rumo. Talvez seja altura de encontrar uma espécie de combinação. Talvez seja altura de irmos para o norte, e o sul, o este e oeste para encontrar as coordenadas de um novo centro. Talvez tenhamos de tentar restabelecer uma ligação perdida, antes que todas as divisões tenham assentado. Talvez.
Por agora, estou na costa de Havre-Saint-Pierre:
Sentado na margem do Havre-Saint-Pierre a comer cavala em lata.
Manhã de outono
folhas vermelhas, folhas amarelas ao vento
e eu escrevo haikus.
Ninguém alguma vez elogiará suficientemente o haiku. No entanto, estes poemas vão directos ao assunto de que tanto precisamos. Talvez não nos caiba escrever o grande haiku, mas mesmo assim eles conseguem tirar um enorme peso dos nossos ombros– todo esse fardo pessoal. Escrever um haiku é esquecermo-nos de nós próprios e apanhar uma lufada de ar fresco(itálico meu).»
Esta «espécie de combinação» – em pleno Labrador, White convoca os haikus, como o melhor método para ser interceptado pelo lugar – é o que a Kenneth White explora em A Estrada Azul: uma geografia do espírito que irriga novas vizinhanças, por confronto e poda, e desenha os contornos do seu próprio território. E quer para a filosofia que daí emerge, quer para as viagens, quer para a poesia, o élan é o mesmo: é preciso activar um pensamento dos começos, respirar descondicionadamente, ideia matriz que foi beber em Heidegger. Daí que para White se imponha «a ideia de que é preciso sairdo texto histórico e literário para encontrar uma poesia com rajadas de vento onde a inteligência (uma inteligência incarnada) corra como um rio». Traduza-se ao vento, neste contexto, pela presença do “acidente”, do aleatório que perturba e refaz/ reordena a legibilidade do acontecimento. E, reitera-o, falando mesmo de um apelo: «Um chamamento que nos atrai para fora, cada vez para mais longe, lá fora. Até já não sermos aquela pessoa demasiado conhecida, mas uma voz, a grande voz anónima vinda do mar alto, murmurando as dez mil coisas de um mundo novo. Que tem de começar algures. Talvez aqui e agora».

Kenneth White (1936-2023) foi um poeta nascido em Glasgow, cidade portuária na costa Oeste da Escócia. Cedo descobriu Thoreau, um dos seus mestres, para quem “marchar é descondicionar-se e encontrar um ser outro”, e seguiu-lhe os passos, errando desde muito novo entre o mar e as montanhas e preferindo os livros e as grandes caminhadas pelos recantos mais selvagens e ermos da sua província ao convívio com outros jovens nos pubs da cidade. Estudou línguas, literatura e filosofia mas, desassossegado, cedo intuiu que as idiossincrasias britânicas lhe eram molestas e decidiu partir, primeiro para Munique e depois para Paris, onde defendeu uma tese de doutoramento muito aclamada sobre “Nomadismo intelectual”. A sua carreira pelas universidades, como conta na autobiografia, Entre Deux Mondes (2021), foi um pouco turbulenta, mas de 1983 a 1996, foi titular da cátedra de Poética do Século XX na Universidade de Paris-Sorbonne. Casou com uma francesa (Marie-Claude White) que seria depois a sua grande cúmplice e tradutora, viveu nos Alpes e na Bretanha, e impôs-se como uma voz absolutamente distinta no panorama da crítica francesa. Maurice Nadeau abriu-lhe as portas da revista Quinzaine Littéraire, onde publicou uma série de textos que apresentavam uma outra tradição poética aos mais distraídos, textos posteriormente reunidos em Une Apocalypse Tranquile (1985). Este individualista incansável também criou grupos de reflexão social e cultural radicais, começando pelo Jargon Group, em Glasgow, uma atividade que culminou na criação do Instituto Internacional de Geopoética, em 1989. Tendo viajado muito (principalmente na Europa, América e Ásia), viveu nos últimos anos na costa norte da Bretanha. Em que é que KW se destacava, no efervescente meio intelectual francês? Convenhamos, caricaturando algum dogmatismo larvar que encerrou a poesia francesa e os seus teóricos numa postura autofágica, não é desacertado dizer que a cultura poética francesa, com as honrosas excepções, foi em parte absorvida pelo projecto mallarmeniano de “reduzir o universo a um livro” e por isso tantos se confinaram na embriaguez solipsista de escrever livros sobre livros. Outros, na esteira de Artaud (porque o problema torna-se borbulhante nos epígonos) recaíram na retórica fatigada de “um eu fissurado” e num formalismo esquizoide. Na tradição americana, de que KW será um extremoso divulgador, preferiu-se antes aquilo que Deleuze designava como “um ponto de fuga” (uma poética do espaço) e um tratamento objectivista e directo das experiências particulares ou locais; e as generalizações ou as interpretações são preteridas, sendo antes à participação que se faz apelo. Ou seja, aí o fito não é tanto o de investir o mundo de significação, como o de capturar as coisas na sua presença individual e momentânea, dando uso à linguagem na sua função humildemente referencial. É o que encontramos em todos os autores sobre os quais White escreveu: Rimbaud, Cendrars, Segalen, Daumal, Cingria, Whitman, Emerson e Thoreau, Pound, William Carlos Williams, Ginsberg, Gary Snyder, Hokusai, etc., para quem o real é muito mais do que uma “sobra, ou uma mera dobra linguística”, é um exterior que se implanta na nossa sombra, apesar de nós. Desde La Figure du Dehors (1982), o seu primeiro livro de ensaios, que são muito claramente desenhados os princípios que KW desenvolverá em L’Esprit Nomade (1987) e onde esboçará a primeira pauta para a sua Géopoétique, posteriormente fixada em Le Plateau de l’Albatros (1994).
Podemos enunciar alguns desses princípios que nortearão toda a sua vida e trabalho:
a) o real (o exterior) existe, não é um fantasma;
b) o que interessa resgatar é o que se situa fora da História («enquanto poeta sinto-me em contradição com a história e a civilização», escreve En Toute Candeur, de 1964, perseguindo o idêntico “olhar adâmico” que Octavio Paz, colocou no centro das suas buscas expressivas);
c) o centro da gravidade é uma imersão numa fenomenologia dos elementos;
d) a desterritorialização (conceito que colheu em Deleuze) é o primeiro passo do sujeito para uma auto-poética, que o projecte no seu máximo de potencialidade (como acontece ao campo, depois de lavrado, precisa).
Desabrochando do feixe destes itens, se há-de entrançar a sua inescapável propensão para a errância, o impulso poético e a investigação ontológica, pois à noção de identidade KW contrapõe a construção ou uma descarga de energias (ideia que comunga com Alain Jouffroy, outro heterodoxo no panorama francês) desencadeadas pelo encontro com o outro desbloqueado, que a viagem sempre proporciona e intensifica.
A viagem corresponde, neste sentido, a esse «caminho excêntrico» de que falava Hölderlin e que não apenas nos pode mudar as ideias como levar-nos a «mudar de ser».
Transmutação, no entanto, que só poderá ocorrer quando a fibra do ego é desvitalizada no contacto com a densidade da terra, nesse movimento que Thoreau descreve em Walden e que KW cita em Gary Snyder/biographie poétique (2015): «Acomodemo-nos e deixemos que os nossos pés percorram, com dificuldade, laboriosamente, a lama e o lodo das opiniões, dos preconceitos e das tradições, dos enganos, das aparências esse aluvião que cobre o globo, de Paris a Londres, de Nova Iorque a Boston e a Concord, através das igrejas e dos Estados, através da poesia, da filosofia e da religião, até conseguirmos tocarmos um fundo, sólido e rochoso, a que podemos chamar realidade em dizendo-nos: aqui é, sem erro».
Atentemos no seguinte poema de En Tout Candeur,de 1964:
MADEIRA DE INVERNO
Então guardei os livros e reparo
tombam as últimas maçãs das
árvores geladas
e vi com estes que a terra comerá
os delgados rebentos vermelhos das
bolotas na terra dura
e valia a casca branca das bétulas
mais para mim do que todas as páginas
e o que eu lia ali
desnudou o meu coração ao sol de
inverno e abriu o meu cérebro ao vento
e de repente
de repente soube aquele tronco invernal
sempre ali esteve
antes dos livros
como depois dos livros
haverá um tronco nevado
e o meu coração estará nu
e o meu cérebro aberto ao vento
Não se julgue apressadamente que KW seja um autor anti-intelectual e arredio aos livros e às bibliotecas, a sua cultura é enciclopédica – nos domínios da literatura, das religiões, da antropologia e da ciência –, existe é nele uma propensão ecológica que o conduz a nunca esquecer o primado da experiência e o encontro com a terra (que ele distingue da “natureza”, lembremo-nos das notas ensaísticas que precedem En Toute Candeur: «Os meus poemas não são “poemas da natureza” mas poemas da terra. A “natureza” está demasiado humanizada. A terra é sempre uma força nua, e sê-lo-á sempre. Os poetas são da terra no escuro e na luz») e, no seu procurado tête à tête com o tangível, denuncia a “logorreia”, o “cerebralismo” de algumas tendências teóricas.
No poema de atlântica/ mouvements et méditations, Hautes Études, lê-se no seu segundo fragmento:
De tempos a tempos
vou para a montanha
neve e fogo –
seguindo hora após hora
o traço negro da ribeira,
lentamente até à crista,
ou por outra, à fonte das neves
atravessando a floresta
rumo aos penhascos e à erva rara
rumo aos socalcos superiores
lá em cima
num enorme silêncio a
cabeça vazia
o corpo sozinho em movimento
e sobressai a dimensão irónica do título e o nível mais performático que heurístico que sustenta esta outra experiência do poema. Coerente, nas ciências escolheu como seus mestres para o diálogo Michel Serres ou Gregory Bateson, dois homens rigorosos mas de caminhos transversais e que nunca se propuseram cancelar o real. E no campo da filosofia, da arte e da poesia orientais o seu conhecimento é vastíssimo. A Géopoétique, no essencial, é um trabalho de síntese, a sua abordagem é sincrética e abre-se a outras culturas, a outros saberes, a outros campos da experiência. Mais do que definir parâmetros e propostas formais para a poesia (propósito que lhe é alheio), o que importa a Kenneth White é divisar um novo sulco antropológico para o humano: «O poeta não quer saber da arte, mas da realidade».
Neste âmbito aproxima-se de alguns fundamentos de René Daumal, que o influenciou, e, como este, KW fala explicitamente de um “ioga poético” (o que incomodará uma certa linhagem crítica mais universitária e a quem estes itinerários são estranhos).
Explicita-se, noutro poema de atlântica, no quarto fragmento de “A Residência da Solidão e da Luz”:
Trabalhando e retrabalhando
os mesmos textos
dia após dia
perdendo todo o sentido
de “produção” e de “publicação”
toda a ideia de uma “reputação” a forjar
antes engajado em qualquer coisa
– distante de toda a literatura – que
podemos com pertinência nomear
um ioga poético.
Desde os primeiros livros que esta via estava presente. Escreve em En Tout Candeur,1964: «Eu não olho a poesia de um ponto de vista literário, mas antropológico, cosmológico. Coisas como o ritmo e a linguagem são de facto cosmológicas bem antes de serem literárias. Quando a poesia perde a consciência das fontes originais, ela torna-se simples literatura – tudo o que, pelo meu lado, tento dispensar». Um outro fragmento iluminará o que atrás se enuncia: «O poeta é humano, mas ele é também qualquer coisa além do humano – ele tem afinidades cósmicas. Quando estas afinidades são contrariadas, ele pode devir inumano: violento, ou louco». Em Kenneth White não são dissociáveis a experiência do mundo e a meditação sobre a poesia e os livros. E embora aprecie a literatura do passado, acredita que hoje é necessária uma outra forma, mais aberta, e é nesta que se dispõe a trabalhar: «Como é que podemos viver de forma a descobrir a realidade a cada passo? Se pensarmos em termos da arte de escrever, eu diria que através de uma prosa que não se limita à arte do romance». Deve-se a quê, esta rejeição do romanesco? Respondeu durante o programa radiofónico “A noite sonhada por Kenneth White”, que lhe foi dedicada: «O romance não me interessa, porque, salvo raras excepções, é um género burguês, é ‘o’ género burguês, isto é, sedentário; agora, massivamente comercial. Esta literatura baseia-se numa lógica muito simplista: “X contra Y, detective contra criminoso, etc.”. E quase nunca se encontra nele a polifonia do mundo, a amplitude das coisas. É a existência numa jaula, por isso a minha prática é diferente».
Em consonância com as suas investigações, definiu deste modo a Geopoética, no arranque de Le Plateau d’Albatroz: «Geopoética é o nome que tenho vindo a dar, desde há algum tempo, a um “campo” que tomou forma após muitos anos de nomadismo intelectual. Para descrever este campo, poderíamos dizer que se trata de uma nova cartografia mental, uma concepção da vida finalmente livre de ideologias, mitos, religiões, etc., e a procura de uma linguagem capaz de exprimir esta forma de estar no mundo (…). Falo da busca (de lugar para lugar, de lugar em lugar, de caminho em caminho) de uma poética situada, ou melhor, que desloca sistemas de representação: uma deslocação do discurso, em vez de uma denúncia enfática ou uma desconstrução infinita. Mas esta é apenas uma configuração preliminar. A ênfase, aqui, não deve ser colocada na definição, mas no desejo, um desejo pela vida e pelo mundo, e no impulso. O projeto da Geopoética não é apenas mais uma “variedade” cultural, nem mais uma escola literária, ou a poesia como arte íntima. É um movimento que diz respeito ao próprio modo como o homem funda a sua existência na terra. Não se trata de construir um sistema, mas de realizar, passo a passo, uma exploração, uma investigação, tendo por ponto de partida esse domínio, algures, onde se interceptam a poesia, a filosofia e a escrita.». Régis Poulet, talvez o seu melhor intérprete e o actual director do Instituto Internacional de Geopoética, elucida-nos, no site do IIG: «White propôs três fórmulas para a geopoética: informação, enformação, exformação; paisagem física, paisagem mental, paisagem verbal: eros, logos, cosmos. A segunda fórmula é com toda a evidência uma aproximação à “equação entre paisagem e pensamento” (…) Já ao Cosmos, por sua vez, define-o comoa bela totalidade e o lugar onde esta foi experimentada: a Terra– bela totalidade em si mesmo; embora cosmos seja também para White o lugar onde pode nascer um mundo». Infere-se: o cosmos é para K. White essa percepção de uma completude em movimento, essa am-bulatória fluidez tectónica que emerge de uma vivência da unidade (a experiência oceânica, para Freud); uma superação da dualidade que propicia uma percepção em delta, o “mundo aberto (ou “branco”, na antiga terminologia do poeta)”, fundando esse lugar onde se reanima a ressonância do poeta com um mundo “anterior” a qualquer interpretação.
Porque, falar do mundo supõe, para o poeta escocês, «uma via imediata», para além das imediações e dos intermediários. Para lá mesmo da civilização, corrobora.
A viagem é um dos operadores desta transmutação.
Sendo um grande poeta, Kenneth White é absolutamente arredio ao “fazer bonito, ao fazer poético”. Esclarece e previne, num pequeno prefácio a Terre de Diamant, 1983: «Há três espécies de livros que eu acho útil praticar: as peregrinações, onde me exponho, as demandas onde eu exploro, os poema onde eu apresento momentos mais exactos do que os outros (…) Creio que a mais refinada poesia consegue exprimir-se numa linguagem extremamente simples e clara. Mas penetrar nesta simplicidade não é fácil.»
Neste sentido, mesmo alguns que sente próximos de si, como Serres e Saint-John Perse, lhe merecem críticas por um excesso de oratória e de grandiloquência. Porque a sua é uma poesia que persegue mais a sageza do que a beleza:
Na primeira parede havia uma
estampa de Hokusai na
segunda
uma radiografia das minhas costas
sobre a terceira
uma longa citação de Nietzsche
sobre a quarta
absolutamente nada –
foi a essa parede que atravessei
antes de chegar aqui.
Refere a linguista Gustave Guillaume : «À medida que avança para o mundo branco, território da maior renúncia física e mental, Kenneth White articula uma linguagem que retira a sua força da sua própria substância e que renuncia a qualquer suporte mitológico ou simbólico». Analisando Walking the Cost/ Le grand Rivage, escreve: «Diga ele o que disser, o poeta não cessa de fazer recuar os limites do indizível e de explorar todas as possibilidades da linguagem que, acima de tudo, é a morada do ser».
No prolongamento disto, confessou o poeta: «Quando eu era criança (isto é, ainda não “dotado de fala”, ainda não “mestre da linguagem” – será que alguma vez o somos?), a minha maior alegria era deixar a minha aldeia na costa oeste da Escócia e ir para algum canto remoto da costa, ou para os bosques ou colinas do interior. Depois de ouvir com atenção, tentava imitar a linguagem das focas, das gaivotas e das corujas».
Evocando um mito arcaico, Kenneth White evoca ainda “uma linguagem partilhada por homens e animais”: «Não acredito neste mito, mas reconheço nele um desejo profundo». E conclui: «É por isso que há tantas onomatopeias na minha prosa e no meu verso. A necessidade de uma linguagem que não seja demasiado humana, que não seja exclusivamente humana. Necessidade de um mundo para além do humano.»
Para terminar esta breve apresentação desta figura fascinante da poesia e do pensamento europeus, deste homem bilingue que escrevia ensaios em francês e a poesia em inglês, e que assinou oitenta e três livros, quero referir ainda um aspecto que aqui e ali aflora e que, em meu entender, dá ainda um cunho mais rico à sua obra: o humor. Por isso fecho com a tradução de um ciclo poético do livro Les Rives du Silence, de 1997, Primeiro Colóquio da Academia das Gaivotas:
PRIMEIRO COLÓQUIO DA ACADEMIA DAS GAIVOTAS
Em pleno agosto na costa da Bretanha
esteve presente Whitman, pelo menos o seu fantasma
e não faltou Milton com o seu Paraíso Perdido
Valéry compareceu com o seu tema final
e Bachelard, com o sonho anagógico
M. Rimbaud é quem nos recebia, tudo em rimas
e, naturalmente, as gaivotas asseguraram a música.
1
Na sessão de abertura
o Sr. Wallace Stevens Junior
diretor dos estudos cosmopoéticos
no Renaissance College da Pensilvânia
proferiu um discurso florido intitulado
«De Florença à Florida»
a que se seguiu à tarde
um arrozoado reichiano sobre a euforia cósmica,
como desfecho
Brigitte serviu-nos uma lagosta de Armor.
2
Outra manhã de verão na maré baixa
as gaivotas vagueavam pelos sargaços da orla
O Sr. Olson fez uma palestra sobre a Suméria
a sua brilhante incoerência deixou o público
atónito e estupefacto
já a tarde foi dedicada
a um passeio meditativo ao longo da praia
na companhia do Ministro do Ambiente
chegado de Paris
especialmente para este evento
(ele nunca tinha visto o mar).
3
À noite
(sol vermelho nos pinheiros)
o Sr. Yasunari de Yokohama
deu uma palestra sobreo mundo flutuante
ilustrada com diapositivos requintados
e músicas especiosas, raras
à meia-noite, na areia branca
sob a lua cheia
jovens raparigas da embaixada japonesa
serviram saquê quente.
4
«Filosofia e oceanografia»
o tema discutido
esta manhã, às dez horas,
pelo Capitão Whistler de Cape Cod
M. A. (Boston), doutor em letras (Bordéus)
que citou Melville, John Donne
Aristóteles e o Talmude
(sobre a mesa à sua frente
o orador tinha disposto um sextante
e nas paredes de toda a sala
foram afixadas cartas marinhas
de grande precisão)
ao almoço
Brigitte serviu um guisado de caribu
regado com um copo de rum
5
Durante duas horas esta tarde
o professor Dorakis de Salónica
dissertou
sobre o mito da Atlântida
que se situaria, segundo ele
(e seria ratificado por Platão)
numa ilha chamada Thera
antes de um vulcão
a ter implodido
mas só os polvos
o sabem de facto
e estes não são loquazes.
6
Esta manhã às dez horas
o Sr. Jean Giono
deu uma conferência ilustrada
sobre Manosque-les-Plateaux
falou do vento
e da luz
e dos descobridores
que se punham à cabeça da tribo
quando os ciganos
numa longa fila, colorida e irregular,
desceram em direcção ao mar
ao meio-dia
Brigitte serviu azeitonas pretas
com um vinho branco da região
7
Esta noite, o Sr. Ivan Donskoi
da Academia Russo-Chinesa
fala de meteoritos
o que caiu na Alsácia
em 1942
e o que foi encontrado perto de Krasnoiarsk
na margem direita do Ienissei
em 1749
“pedras caídas do céu”
diziam e repetiam
nómadas e camponeses
“disparates, disparates”
replicavam os homens de ciência
«árdua, diz Donskoi, é a rota da inteligência».
8
À conferência de sábado
lavrou-a o Sr. Chou En-lai
de Xangai
o seu tema: o tao da economia
o almoço consistiu em arroz e chá
após o que o Sr. Sun Yat-sen
da ilha de Taiwan
leu os poemas de Li Po
«uma gaivota
perdida entre a terra e o céu»
as gaivotas que por ali pairavam
não exibiam uma ponta de alegria.
9
Convidado para falar sobre
«a fenomenologia da neve»
M. Merleau-Ponty
acabado de regressar de Chicoutimi
à última hora
trocou o seu tema
por outro que lhe parecia mais apropriado
para o clima daquela manhã:
«A estética da chuva».
a conferência sobre a neve foi adiada
para uma futura sessão de inverno
a realizar nos Pirinéus