António Cabrita
O PESADUME. HÁ PALAVRAS QUE POR SI ESCALPELIZAM a polpa de qualquer itinerário. É o caso desta palavra em desuso: pesadume. Foi para aliviar o pesadume, a acrimónia, que, oito anos depois do projecto ter sido concebido nos desertos centrais da Austrália, Marina Abramovic e Ulay encetaram a travessia a pé da Muralha da China, cada um da sua posição oposta, no fito, de separados à partida por cerca de 5000 km, se encontrarem semanas depois no “ponto G”, que lhes culminaria o trajecto amoroso. Quando a “doidice” foi concebida, o objectivo era casarem, nesse ponto de encontro.
Mas vale a pena retomarmos a história desde o início, pois a deles é uma das mais espantosas histórias de amor que o século XX nos legou.
Em 1975, conheceram-se no aeroporto de Amsterdão. Ulay, um alemão estacionado em Amsterdão, foi-lhe apresentado pela galerista; esta havia-o convidado para ser o cicerone dela, na cidade. A artista sérvia achou graça a que ele prendesse o cabelo, comprido e puxado para trás, com dois pauzinhos, como ela, e ao seu bizarro rosto, dividido por dois modos de tratamento diferente: de um lado escanhoado, maquilhado, a sobrancelha retocada e um batom leve nos lábios, no lado direito com a barba por fazer, exibindo uma pele oleosa e uma sobrancelha natural.
Ulay entretinha-se a figurar no seu rosto os seus dois lados, feminino de um lado, masculino no outro. Como se fora uma criatura hermafrodita de antes do Zeus de Aristófanes ter dividido e separado no homem as duas metades – deixando para sempre os humanos carentes da parte que lhes faltava.
Depois de fazer a sua performance (Thomas Lips), que era muito física e sujeita a ferimentos, Ulay fez-lhe os curativos, e a sua amenidade atraiu-a. Foram depois jantar num restaurante turco onde, a meio da conversa, descobrem improváveis afinidades: faziam anos no mesmo dia, 30 de Novembro, e ambos tinham o hábito de arrancar das suas agendas pessoais a página que correspondia ao dia de aniversário. As primeiras de várias coincidências que descobririam depois.
Nessa noite dormiram juntos e não se despegaram mais durante doze anos.
O que há de singular nesta relação amorosa é o carácter simbiótico que tomou. Para retomar as metáforas da fábula de Aristófanes sobre o Amor, em O Banquete de Platão, “o linguado” estava de novo inteiro.
Não apenas se tornaram a parelha artística mais famosa e produtiva dos anos setenta e oitenta como alargaram esse aspecto da “alma gémea” à vida em comum. Jura Marina, na sua biografia: “Conversávamos em sonhos e nos meios sonhos, depois acordávamos e continuávamos a conversa. Se eu feria o meu dedo no lado esquerdo, ele feria o dedo no lado direito”.
Compraram uma furgoneta da Citroen, que pintaram de preto, arranjaram uma cadela, a Alba, e dedicaram-se a uma ascética vida nómada durante cinco anos, percorrendo a Europa, nos intervalos de serem chamados para realizarem performances, nas galerias ou nos festivais artísticos.
Algumas das mais famosas performances reforçavam este carácter simbiótico, onde procuravam despir-se das suas individualidades para projectarem um “terceiro da relação”, o Outro, como chamavam a essa entidade que os mantinha unos. E o que os ligava era também particular: “Há casais que compram utensílios de cozinha quando vão morar juntos. Ulay e eu começámos a planejar como fazer arte juntos.”

De entre as cerca de vinte e duas performances que conceberam juntos, referiremos quatro que ilustram a fusão física e espiritual que caracterizava o casal:
Talking About Similarity (Falando de Similaridades): “Ulay sentou-se na frente, olhando para o público. Havia um gravador para reproduzir sons e uma câmara de vídeo para registrar a performance. Assim que nossos amigos se sentaram, Ulay abriu muito a boca, e eu liguei o gravador, que reproduziu o som de uma bomba de sucção de dentista. Ele ficou sentado daquele jeito por vinte minutos. Então eu desliguei o gravador, e Ulay fechou a boca. Ele pegou numa agulha forte, do tipo usado para costurar couro, e com uma linha grossa branca costurou os lábios para que não se abrissem.
Isso não foi rápido. Para começar, ele precisava de furar a pele abaixo do lábio inferior – nada fácil – e depois a pele acima do lábio superior. Também nada fácil. Depois, ele puxou a linha para apertá-la e deu um nó. Foi aí que nós trocámos de lugar: Ulay foi se sentar no meio da plateia, e eu sentei-me na cadeira que ele tinha acabado de desocupar.
“Agora”, eu disse a nossos amigos, “vocês far-me-ão perguntas, e eu responderei como Ulay”.
“Ele sente dor?”, perguntou um tipo.
“Como assim?”, disse eu.
“Ele sente dor?”, voltou a perguntar o mesmo.
“Poderia repetir a pergunta?”
“Ele sente dor?”
Fazia-o repetir tantas vezes porque aquela pergunta estava errada sob mais de um aspecto. Para começar, eu tinha dito aos nossos amigos que responderia como Ulay.
Logo, a pergunta correta teria sido: Você sente dor?
Mas também, e ainda mais importante, a dor não era a questão. A peça não dizia respeito à dor, disse eu. Ela dizia respeito à decisão: Ulay decidindo costurar a própria boca, e eu decidindo pensar por ele, falar por ele. Eu tinha aprendido em Rhythm 10 e em Thomas Lips que a dor é como um portal sagrado que leva a outro estado de consciência. Quando se chegava àquele limiar, um outro lado se abria. Ulay tinha aprendido isso também – mesmo antes de nos conhecermos.
“Por que é que você está falando, se Ulay está calado?”, questionou uma mulher.
Não importa qual de nós dois fala e qual fica calado, respondi. O conceito é o que importa.
“A peça era sobre o amor?”, perguntou alguém. Ou era sobre a confiança?
Esclareci que a peça era simplesmente sobre alguém que confiava noutra pessoa para falar por ele – era sobre amor e confiança.»
Em Relation in Time (Relação no Tempo), Marina e Ulay amarram os seus longos cabelos formando uma espécie de cordão umbilical, que os transforma num único ser.
Breathing In, Breathing Out (Expirando/Expirando): “Enfiámos filtros de cigarro nas nossas narinas para bloquear o ar, e, com fita adesiva, prendemos pequenos microfones no pescoço. Ajoelhámo-nos, um diante do outro. Esvaziei meus pulmões ao máximo, e Ulay encheu os dele ao máximo. Então, nós grudámos as bocas, e ele soprou o seu ar para dentro da minha boca. E eu soprei de volta o ar, para ele.
Enquanto as nossas bocas permaneciam grudadas, enquanto o som da nossa respiração (e depois dos nossos arquejos) era amplificado por todo o centro cultural, nós trocávamos repetidamente aquele primeiro pulmão cheio de ar – que, naturalmente passou a ter cada vez menos oxigênio e cada vez mais dióxido de carbono, através de cada expiração. Após dezanove minutos, não restava mais oxigênio. Nós páramos quando estávamos a ponto de perder a consciência».
Rest in energy(energia e repouso): «essa peça, com um grande arco e flecha, foi a representação suprema da confiança. Nela, eu segurava o arco, e ulay segurava a corda esticada, com a extremidade posterior da flecha entre as articulações dos dedos e a ponta voltada para o meu peito.
Nós dois estávamos num estado de tensão constante, puxando de cada lado, com a ameaça permanente de que, se seus dedos escapulissem, eu levaria uma flechada no coração. E, enquanto isso, cada um de nós estava com um pequeno microfone preso ao peito, por baixo da camisa, de modo que a plateia pudesse ouvir o som amplificado dos corações pulsando. E tanto o meu coração como o dele estavam batendo a uma velocidade cada

vez maior! Essa peça teve a duração de quatro minutos e vinte segundos, o que pareceu uma eternidade. A tensão era insuportável.»
Basta ver a fotografia para nos darmos conta da tensão que se poderia acumular nesses quatro minutos e meio de um silêncio ateado pelo suspense de todos os limites. E era esse o grau de sintonia, da fonte que ambos partilhavam.
Em 1980, decidem vender a furgoneta e irem para Alice Springs, na Austrália, à procura de novos estímulos e de formas expressivas. Aí trabalharam algum tempo com Phillip Toney, um advogado activista em questões referentes à terra e aos direitos dos aborígenes. Depois de vários dias a ladearem a cerca de arame farpado de 5000 km que nessa província defende as ovelhas dos dingos, os cães selvagens, assarapantados pela extensão da cerca e cépticos de que fosse realmente eficaz, vem-lhes à cabeça que uma estrutura humana tão grande só a Muralha da China e sob o calor tórrido daquelas paragens concebem o projecto que, sem saberem, seria o último da parelha: cada um partiria de um ponto oposto da muralha, perfazeriam a pé cerca de 2500 km cada um para finalmente se encontrarem e aí, coroando esse traço de união, casarem.

Eram já dois artistas famosos na Europa e com uma determinada área de influência, por serem considerados dois nomes cimeiros do género que representavam: a Performance.
Começaram então, em 1980, as diligências para obter as autorizações necessárias junto das autoridades chinesas.
Lê-se em Durante a Construção da Muralha da China, de Kafka: «Contra quem devia proteger-nos a grande muralha? Contra os povos do norte. Sou natural do sudeste da China. Lá nenhum povo do norte pode ameaçar-nos. Lemos a respeito deles nos livros dos antigos; as crueldades que eles praticam seguindo a sua natureza fazem-nos suspirar, nos nossos pacíficos caramanchões.
Nos quadros dos artistas, fiéis à verdade, vemos esses rostos da maldição, as bocarras escancaradas, as mandíbulas guarnecidas de dentes muito afiados, os olhos apertados que já parecem cobiçar a presa que a bocarra vai esmagar e despedaçar. Se as crianças não se comportam, mostramos-lhes essas imagens e elas voam chorando para o nosso colo. Mas não sabemos mais do que isso sobre esses setentrionais. Não os vimos nunca e se permanecermos em nossa aldeia nunca os veremos, mesmo que eles se lancem em linha recta à nossa caça, montados nos seus cavalos selvagens — o país é grande demais e não os deixa chegar até nós: cavalgando, eles irão se perder no ar vazio.». E mais
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frente, diz o narrador deste conto do autor checo: «Nosso país é tão grande que nenhuma lenda dá conta do seu tamanho, o céu é quase incapaz de cobri-lo – e Pequim é só um ponto e o castelo imperial só um pontinho». O céu quase é quase incapaz de cobri-lo: imagine-se uma cama maior do que qualquer lençol que a pudesse cobrir. Nenhuma lenda dá conta do seu tamanho: ou sim, e só em anos recentes os chineses se sentiram estremecer quando a NASA desmentiu a lenda mais entranhada no que se refere à Muralha, a convicção, disfarçada de convenção, de que a Muralha se veria da Lua. Não é verdade, e mesmo do espaço a linha que do espaço se via era afinal a de um rio chinês.
Era impossível ser de outro modo: apesar dos vinte e um mil quilómetros de comprimento que a arqueologia apurou para a sua extensão, e dos seus sete, oito metros de altura, a muralha só tem de largura, em média, quatro metros.Contudo, a sua lenda era suficiente pregnante para se considerar uma auto consciência alucinada da identidade chinesa, algo aparentado a uma força cosmológica.
Em 1980, só a muralha da China parecia uma manifestação de proporcionalidade exterior à altura daquele amor que Marina e Ulay sentiam partilhar. Conta Marina: «O que descobrimos foi que a Muralha tinha sido projetada na forma de um dragão gigantesco, como uma imagem espelhada da Via Láctea. Os antigos chineses tinham começado a Muralha, afundando 25 navios à beira do mar Amarelo, para criar as fundações para a cabeça do dragão.
Então, à medida que o dragão se ia erguendo do mar, seu corpo atravessava sinuoso a paisagem e as montanhas, numa correspondência exata com o formato da Via Láctea, até chegar ao deserto de Gobi, onde a cauda estava enterrada.»
Ressoava esta projecção mitológica como a doacção absoluta que poderia corresponder à noção do amor fusional que então cultivavam? Com certeza, abrindo dimensões novas na natureza da expressão amorosa.
Marina e Ulay continuaram a produzir várias outras performances artísticas em conjunto enquanto se debatiam com a burocracia chinesa. Entre outros aspectos, esta não queria que eles fossem os primeiros a percorrer, na totalidade, toda a extensão do troço central da Muralha. Dois anos depois de receberem respostas corteses e vagas sobre a amizade internacional decidiram consultar um amigo que costumava fazer negócios na China:
«Diga-nos, por favor, o que estamos a fazer de errado. Não conseguimos levar esse projecto adiante.” Mostrámos-lhe algumas das cartas. Ele olhou para mim e começou a rir.
“O que é tão engraçado?”, perguntámos.
“Pois é, na língua chinesa há 17 formas de dizer não. E, nessa correspondência, eles usaram todas as 17.”»
Só seis anos depois, e depois de milhentas negociações, a dupla conseguiu realizar o seu projecto. De começarem a sua jornada em pólos contrários e de dois mil e quinhentos quilómetros depois se encontrarem, sendo todo este itinerário filmado. Contudo, desta vez já não para casarem mas para encerrarem de forma sumptuosa uma relação amorosa e uma parceria única de trabalho criativo.

O tempo, o mesmo tempo que faz com que com que as Muralhas, milagrosamente, se mantenham em pé até agora, dois mil e tal anos depois, devido a uma biocrosta composta por bactérias, musgos, líquenes e outros organismos, foi erodindo a relação e acabou por afastá-los, embora não à lendária ambição de um amor que ousou manifestar-se com uma verdadeira energia shakespeariana. Daí que o
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termo daquela grande jornada constituiria um sinal de pesadume, de um certo desmoronamento. Tal não apaga a inaudita, genuína e intensa história daquele amor, táo viva como o percurso artístico dos dois artistas, que, sobretudo, confirmou Marina Abramovic como um dos criadores seminais de um século que não foi avaro em nomes e novas aventuras para a arte.
Ambos se entregaram, na vida e na arte, como se estivessem permanentemente a ser alvejados por uma seta em vias de lhes atingir o coração e tiveram a grandeza de nunca fugir ao desafio.
Nota: todas as citações foram extraídas da auto-biografia de Marina Abramovich,Pelas paredes, traduzida no Brasil e adaptadas ao português de Portugal. As fotos utilizadas nesta crónica resultam de fontes diversas, não tendo sido possível determinar a sua autoria