Paulo José Miranda
PARTA-SE DO PRINCÍPIO de que viajar é sair do lugar onde se está usualmente ou do lugar a que se pertence. Assim, fulano viaja para, de «A» para «B», sendo «A» a casa, o bairro, a cidade, o país onde vive, e «B» o lugar aonde vai. Por conseguinte, a viagem pressupõe sempre um regresso. Parte-se de «A» para «B», mas tem de se regressar de «B» para «A». Acaso fulano ficasse em «B», chamar-se-ia a isso «mudança» e não viagem. A viagem é uma mudança, mas por um curto espaço de tempo.
Há vários tipos de viagens, sendo as mais comuns as de férias, de negócios e de estudo. Mas há também as viagens que procuram um tempo que nunca existiu, às quais chamo viagens nostálgicas. Entenda-se nostalgia não enquanto sinónimo de saudade, mas enquanto saudade de um tempo que nunca foi, mas que se faz sentir em nós. A saudade é concreta: saudades de alguém, de algum lugar, de alguma coisa ou de um tempo. A nostalgia é a falta de algo que nunca aconteceu, que nunca foi. Por exemplo, a nostalgia da Grécia Antiga. A Grécia Antiga existiu, claro, mas não em mim, não em todos os humanos que viveram depois da queda de Alexandre, que já não era grego, mas macedónio. Assim, a minha primeira viagem à Turquia, por três semanas, levou-me a Tróia, junto ao Estreito do Dardanelos, entre o mar de Mármara e o mar Egeu. Viajava ao encontro do que não existia. Não queria ver, nem tão pouco realizar um sonho, queria manter o sonho vivo, ateado. No seu sentido mais elevado e funcional, a realidade serve para preservar o fogo da palavra. Tróia era uma palavra e a Grécia Antiga um conjunto de palavras que configuram um sonho da dimensão de um arquipélago. A minha viagem
foi ir ao sonho e voltar. Este sonho a que me refiro não é uma alienação. Sonhar, aqui, é um constitutivo fundamental do humano, no sentido de preservação do horizonte da paixão, isto é, da preservação do interesse. Sonhar mantém-nos focados naquilo que importa para cada um de nós.
Mas usualmente diz-se «viagem de sonho», querendo com isso dizer algo completamente diferente da viagem que aqui está em causa. Diz-se «viagem de sonho» porque se sonha ou se sonhou com isso durante muito tempo. «Sonhou-se» no sentido de «um dia conseguir realizar-se». Ir a um lugar que sempre se quis ir. Estar num lugar onde sempre se quis estar, ainda que por um curto espaço de tempo.
Mas a minha viagem de sonho não foi ir a um lugar aonde sempre quis ir, mas atear, preservar o lugar que nunca existiu a não ser em palavras. Nunca se viaja à nostalgia.
Em contraposição à viagem sonhada, quer no sentido da realização ou no sentido da preservação do horizonte da paixão, contrapõe-se a viagem como alienação. A viagem que nos faz esquecer de nós mesmos, que nos faz esquecer que não sabemos quem somos e nem qual é o sentido desta vida que temos. Nada faz mais esquecer que não se sabe quem se é do que viajar. Viajar, aqui, no sentido de se perder de si mesmo no horizonte do outro que é visto como sendo estranho, estrangeiro. Em qualquer país estrangeiro somos naturalmente conduzidos para uma contraposição, para um pensamento binário, de um e outro, eu e tu, que ajuda a esquecer o desconhecido que nos habita e a morte que nos aguarda. A viagem, como mais nenhum outro artifício humano, faz-nos esquecer a vida que somos. Diz-se que viajar nos ajuda a ver o outro, que nos ajuda «a abrir os nossos horizontes», mas acima de tudo ajuda-nos a não nos ver a nós mesmos. A reflexão precisa de solo firme. A viagem não se desassocia deste carácter de miragem. Miragem no sentido de uma alucinação da imagem, de uma distorção da imagem.
«A viagem tem sempre um
naturalmente conduzidos para uma contraposição, para um pensamento binário, de um e outro, eu e tu, que ajuda a esquecer o desconhecido que nos habita e a morte que nos aguarda. A viagem, como mais nenhum outro artifício humano, faz-nos esquecer a vida que somos. Diz-se que viajar nos ajuda a ver o outro, que nos ajuda «a abrir os nossos horizontes», mas acima de tudo ajuda-nos a não nos ver a nós mesmos. A reflexão precisa de solo firme. A viagem não se desassocia deste carácter de miragem. Miragem no sentido de uma alucinação da imagem, de uma distorção da imagem.
«A viagem tem sempre um componente temporal, não apenas porque há tempo envolvido ao percorrer-se a distância, mas porque no seu horizonte está um desejo de alteração radical do presente, do aqui e agora. Quem viaja procura de algum modo fugir do presente, fazer uma pausa dele ou engrandecê-lo, elevá-lo à categoria de mito. Transformar o presente em mito é a ambição de todo aquele que viaja. A viagem, para quem foge do presente, é uma espécie de forward, de pôr o comando em modo rápido para que se passe rapidamente para o que se quer ver, e deixar este presente que não nos interessa. Enquanto pausa do presente, a viagem é um descanso dos dias, umas férias. Mas não há pausas, nem fugas de nós mesmos. Embora a viagem nos possa dar essa ilusão e a ilusão, é sabido, quase sempre é doce. Uma experiência completamente diferente é a de quando se regressa a um lugar aonde não se vai há muito, embora o tempo também esteja envolvido nessa viagem, como é o caso de Ulisses na Odisseia. Mais do que voltar a casa, Ulisses quer recuperar um tempo no qual as coisas tinham uma normalidade ou um encanto que
deixaram de ter. A viagem de Ulisses é uma tentativa de repor a vida como ela era ou como pensava que ela era. Porque, na verdade, a vida nunca é como se pensa que é, porque pensar e viver têm tanto em comum como uma girafa com uma raia»[1].
Assim, se é inegável haver uma ligação profunda entre viagem e vida humana, não é menos verdade essa ligação com o acto de escrever:
«O objectivo do escritor é […] Criar uma viagem. Não é descrever uma viagem, é criá-la.
A diferença entre uma viagem que se cria e uma que se descreve é a mesma que distingue a tarefa do poeta da tarefa do turista.
Diferença que pode e deve ser extensiva à vida. Cada um de nós com o tempo que é pode escolher entre ter uma relação de poesia ou uma relação de turismo com a própria vida»3.
A diferença entre a viagem da e na vida e a viagem na escrita é que esta «assume um carácter mais distorcido, porque se trata de viajar para onde nunca se esteve nem se vai poder estar, a não ser por poesia, isto é, por um mito, por uma narrativa […]. A escrita apresenta-se, assim, não como um comboio em andamento, mas o estar a escrever num comboio em andamento, em que o presente passa depressa e, à medida que a viagem se alonga, o passado se torna mais apetecível. Na primeira metade do século V a.C., Heraclito escreveu panta rhei, tudo flui, tudo é devir ou, de um modo mais português, tudo passa ou tudo está sempre a passar. Com isto queria dizer que estamos junto com todas as coisas num tapete de tempo. O tempo leva-nos. Tudo flui, tudo passa. O mundo, o universo é um comboio imparável. É isto a viagem. Se a nossa vida é um comboio em andamento, haverá sempre momentos em que nos apetecerá voltar para trás ou saltar para a frente, ir mais rápido que o tempo, ou ainda saltar do comboio. Para saltar para a frente, projectar, tem de se usar a imaginação. […] E para voltar atrás temos de usar a memória. E é sabido que a identidade humana, isto é, o que cada um de nós é ou julga que é, tem os seus alicerces bem fincados na memória. O problema […] é que a memória tem tanto de real como qualquer dos textos bíblicos. No fundo, o maior ensinamento da Bíblia, principalmente o Antigo Testamento, é que temos de contar histórias, criar mitos, temos de escrever ou de usar a linguagem para nos conhecermos. Só reconhecemos em nós aquilo que lemos. Nós não nos reconhecemos no espelho, mas na palavra. E é isto que a Bíblia nos mostra exemplarmente, que a nossa imagem de Deus se reflecte na palavra»[2].
Mas, como também já se viu antes, a vida humana é ela mesma uma viagem. Uma viagem da infância à velhice, do nascimento à morte. No sentido ontogenético, do ponto de vista individual, a viagem de cada um é uma viagem do mito à razão, da infância à idade adulta.
«A infância é um planeta distante com leis próprias. Sabemos hoje pela astrofísica da poesia, que um ano nesse planeta equivale a dez no planeta Terra, no planeta dos adultos. Assim, quando alguém chega ao nosso planeta, vindo da infância, tem quase sempre muito mais idade do que nós, embora aparente ter menos. Estranhamente produz-se um esquecimento nesta viagem. […] Esta viagem é a vida humana. […] Em comparação com o dar-se conta de que o que foi nunca mais será, em comparação com estarmos a deixar de ser a cada instante, a tornar-nos irreconhecíveis a nós e aos outros, conversas sobre habitantes de Marte tornam-se muito mais plausíveis, muito mais lógicas. Que lógica há em deixarmos de ser quem somos e continuarmos a ser? Que lógica há em não poder recordar com grande nitidez algo que sucedeu aos dois anos? Que lógica há em não se poder voltar atrás na memória como faz um computador?
O computador, esse, sim, tem lógica. Nós, não. Passado é uma metonímia para infância e faz-nos ver com muita clareza que só com poesia podemos expressar o profundo paradoxo da nossa condição. Sem poesia, temos os computadores, temos a eficaz operacionalidade da tecnologia»[3].
A memória não configura apenas a nossa identidade, a possibilidade de ligarmos aquilo que fomos àquilo que somos, ou aquilo que foi com aquilo que está a ser, pois nesse seu exercício a memória produz uma distorção de imagem, a memória é um aplicativo de viagem, sem o qual não é possível qualquer ficção.
«Recuar na memória é um exercício poético por excelência. Recuar na memória é exercitar a alma [em sentido de apreensão de tudo o que transcende a matéria, como sejam o casos das histórias, dos mitos, dos sonhos, da consciência]. Indo ao ginásio, exercitamos o corpo; ao recordar, exercitamos a alma. E o exercício máximo, o recuo máximo, essa maratona da memória, do ponto de vista pessoal, é recuar até à infância, que contém também a possibilidade máxima poética. Mapear esse território com o telescópio do planeta Terra, o planeta da razão, é a possibilidade de cicatrizar a escuridão, a possibilidade de conceder alguma centelha de luz a este não se saber o que andamos a fazer na vida. Não é a infância que concede a possibilidade da luz, é a tentativa de a resgatar daqui de onde estamos hoje. No fundo, enfrentar o tempo. A existência não é apenas uma viagem no tempo, é uma viagem no paradoxo do tempo»[4].
«[…] mais do que passado, a infância é uma porta aberta para o mito, para a poesia, não porque seja especial, cândida, ingénua, etc., mas porque a viagem até lá mostra-nos a nossa natureza mítica. A nossa constituição física tem mais mitos que ossos. Parafraseando Eduardo Galeano, a nossa constituição física tem mais histórias do que átomos. […] Contamos e lemos histórias para ver, sim, mas fundamentalmente para voltar atrás. Mas esse atrás a que queremos voltar não existe e nunca existiu. A viagem que queremos fica sempre por fazer. Porque em verdade nós não queremos mesmo voltar atrás, nós queremos voltar a um atrás idílico, que nunca existiu a não ser na memória. E mesmo que tenha existido, queremos que exista agora de modo diferente, isto é, queremos que exista a darmo-nos conta de que existe, como antes não fora possível. […] Ler tornou-se metáfora de viagem precisamente por isso. E a viagem por excelência é a viagem de regresso.
A memória é uma metáfora do regresso a casa; e o regresso a casa é uma metáfora do regresso à infância; e o regresso à infância uma metáfora do regresso a um tempo feliz; e um tempo feliz é o regresso a um tempo em que não havia morte, e não termos de morrer é a grande transformação ambicionada.
Não ter de morrer é como se fôssemos um livro continuamente nas mãos dos outros. É por isso que contamos histórias, e por isso que as lemos, e por essa razão estudamos textos. É também isto que os antigos queriam dizer quando afirmavam que a alma é imortal. […] [Esta viagem] foi feita do que não poderia existir: encontrar o sentido da vida, encontrar o caminho de casa, voltar à infância, voltar à impossibilidade de morrer. Toda a viagem é uma procura de um tempo e não de um espaço. Um tempo em que não havia morte»[5].
Mas, e como vimos na introdução, há outros tipos de viagem, mais comuns: «A viagem que coincide com as férias todos os anos, na qual se julga que se vai a algum lado, embora não se procure outro tempo, apenas não sentir o tempo. […] [Estamos agora] na presença do carácter alienante da viagem. Pelo menos, se não alienante, balsâmica ou uma espécie de analgésico existencial. A viagem é o que permite que não nos vejamos a nós mesmos, pois estamos ocupados a ver aquilo que fora de nós, imediatamente, nos é estranho. […] Depostos nesta estranheza dos lugares, dos costumes, das pessoas, deixamos de nos ver a nós mesmos como o estrangeiro que somos. Foi isto que a indústria do turismo compreendeu muito bem. Como se diz em português, “enquanto o pau vai e vem folgam as costas”. Distraímo-nos com a estranheza da geografia, com a estranheza dos costumes dos outros e assim não nos deparamos com o estranho que somos. O turismo salva. Alguns, entretanto, pensarão que nem todas as viagens podem ser chamadas de turísticas. Enganam-se. Em sentido ontológico, viajar é sempre sair de si.
Seja por intermédio de uma agência turística, com tudo programado e mais três dezenas de cúmplices, seja sozinho pelos desertos do mundo. […] Quem viaja não se procura a si mesmo, foge de si mesmo, tenta esquecer-se de si mesmo ou, na melhor das hipóteses, tenta conhecer o mundo, os outros. Não inventámos as viagens. A viagem nasceu da nossa necessidade de nos protegermos de nós mesmos. Depois de esclarecido o carácter alienante da viagem, que nos protege de nos vermos como estrangeiros de nós mesmos, de ficarmos face a face connosco mesmos, na melhor das hipóteses somos vizinhos de nós mesmos e damo-nos “bom dia” quando nos cruzamos. [Mas a] natureza ficcional do ser humano – porque é ficcional –, desvenda-o como contraditório e também já nos tinha sido mostrado pela heteronímia de Fernando Pessoa. Entre muitas outras características que podemos apontar à heteronímia, e que não cabem aqui, podemos dizer que nos alerta a consciência para a possibilidade de sermos outros de nós mesmos. Um humano não é uno e imutável, é múltiplo e em contínua mudança. Não somos múltiplos, em simultâneo, como no projecto de Pessoa, mas não há leis que se possam aplicar ao humano que não tenham o seu contraditório igualmente válido. E o carácter da viagem […] toca de perto esta multiplicidade e natureza contraditória do humano. Mais: a viagem assume-se como fundamental naquilo que é o ser humano, quer seja como alienação, que é, quer seja como mãe adoptiva, que também é. A viagem vai muito além de nos mostrar o nosso carácter contraditório em que nenhuma lógica consegue entrar, ela mostra também a nossa natureza perdida, de órfãos, perdida desde sempre e para sempre. Porque viajar é procurar a mãe que nunca se teve. Procurar uma mãe que nos liberte de nós mesmos e que nos proteja, simultaneamente. Por isso, quando olharmos os turistas transitando pela cidade com as suas malas sobre rodas, não esqueçamos que procuram a mãe que nunca tiveram. Procuramos todos uma mãe que nunca tivemos, tentando esquecermo-nos de que somos os estrangeiros de nós mesmos que vemos passar na rua. […] Para onde todos nós vamos é para o estrangeiro. Não somos apenas estrangeiros de nós mesmos, nós somos também aqueles que estão continuamente a caminho do estrangeiro. A nossa viagem não é a viagem de Ulisses, de regresso à pátria, mas na direcção do desconhecido, na direcção do estrangeiro. E que estrangeiro é esse para onde todos caminhamos? Pela ordem natural das coisas, não é a nossa morte. E quando chegarmos à nossa morte já não estamos cá. Pela ordem natural das coisas, o estrangeiro absoluto é a morte do pai, que é precisamente a viagem […] que todos nós fazemos na vida. […] É este o nosso destino, forasteiro. A viagem conduz ao absurdo da viagem. não há pacote turístico que salve o humano do seu destino. nenhuma alienação nos salva.
Não se viaja somente para se esquecer de si, para se esquecer que se é um estrangeiro de si para si, viaja-se também e principalmente para esquecer o destino, esse forasteiro. Alienados, viajamos para esquecer a morte, em sentido poético viajamos para um tempo em que não havia morte»[6].
A viagem está o centro de tudo o que não existe, no centro daquilo que mais intensamente define o humano. A viagem acaba por revelar o humano como miragem, no sentido em que tudo para onde tende é para o que já não existe, pela acção da memória, ou ainda não existe, pela acção da vontade, da projecção.
[1] MIRANDA, Paulo José. A Lógica da Poesia – Contíguo a Cálicede Luís Carmelo. Abysmo, p. 18. 3 Ibidem, p. 17.
[2] Ibidem., pp. 19-20.
[3] Ibidem., pp. 30-1 e 31-2.
[4] Ibidem, p. 36.
[5] Ibidem, pp. 37 e 44-5.
[6] Ibidem., pp. 45, 46 e 47-8 e 48-9.