ASTROFUGA

Luís Filipe Sarmento

DEPOIS DE TER CAMA CONFORTÁVEL, DEIXEI DE TER sequer, por um dos infinitos acasos que, como um puzzle, constitui o processo caótico de estar vivo entre mortos e vivos, um colchão, mas sim um velho sofá de arrecadação, espremido ao meio sabe-se lá por quantas aventuras clandestinas de jovens fogosos ou de velhos católicos dados à intriga de deus e dos sexos angelicais.

Teria uns sete anos e já era um pária. Com a desistência da vida daquela que à vida me trouxe e com a loucura pela perda daquele que com ela colaborou com promessas de felicidade pequeno-burguesa, fiquei entregue a uma espécie de quarto-escuro em casa de família próxima mais por adopção obrigatória em tempos de ditadura do que por adopção presidida pelo afecto.

Do pesadelo das primeiras noites à estratégia de fuga das segundas e terceiras noites foi um ápice e, no entanto, já alguns anos tinham passado. Preexistente ao mito cosmonáutico de Iuri Gagarin invadiam os meus sonhos vingativos de fuga, preparada ao pormenor, no foguetão de chapa pintada aos quadrados vermelhos e brancos, instalado no jardim público e ao qual não tinha acesso ao contrário dos meus vizinhos que, durante as tardes de Primavera, se recriavam de aventuras invejáveis.

Confinado ao velho e inútil sofá-cama, com almofada de palha a fazer de capacete-turbante (e com a fúria de Saladino contra os sinistros cristãos que me agrilhoavam à humilhação e ao desprezo) projectei no sombrio tecto do minúsculo quarto de arrumações que me fora destinado como sentença um céu nocturno de fuga e liberdade.

A partir daquele castelo vampiresco viajei por paraísos de gelados de morango e bolas de Berlim, brinquedos que só tinham existência nas montras das lojas, batidos de maçã a um impossível balcão de um tão na moda snack-bar ou de umas calças à boca de sino da proibitiva marca Lois.

Não havia nada a fazer, a minha revolução estava na ordem do dia, da madrugada e da noite em que de noite projectava fugir daquela escuridão. Não é que todos os meus sonhos, ou quase todos, não entrassem na casa onde habitava, só que não me eram destinados. Maldade? Crueldade? Desumanidade? Não, nada disso. Falta de consciência do sangue. Ainda que por parentesco lhes pertencesse não era deles. Esta era a diferença entre estar com eles ou estar a mais.

Viajar tornar-se-ia essencial.

Sentado em manta de estopa disse-me tantas vezes o que queria nesse desejo incomensurável de ser senhor da minha liberdade que o plano de fuga elaborado durante sete anos seria brevemente posto em prática com nomes de código e tudo o que fizesse parte do imaginário de um jovem púbere para que a evasão não falhasse.

No desenho das últimas noites viajei por estantes repletas da banda desenhada que faziam parte da lista de preferências a adquirir, divaguei por lautos almoços de bitoques, errei por montras floridas e escaparates de LP’s de rock’n roll, sonhei com blusões Wrangler de veludo cotelê e camisas cintadas com colarinho boca de pato e idealizei aterrar a minha Apolo 8 decorada com pinturas psicadélicas numa qualquer praça desta minha Lisboa ainda sob a ditadura pidesca e libertá-la ao som do jazz-rock dos Blood Sweat & Tears.

Viajei à volta da minha cama durante sete anos de condenação pelo crime de ser indesculpavelmente órfão e nessas viagens imaginei a liberdade desse longínquo dia em que me entreguei ao escape com 14 anos de larga experiência de andarilho pelo universo dos desejos, dos sonhos, de tudo a que tinha direito e que me fora escamoteado.

Neste menino, cuja história ora vos conto, estão todos os meninos que, viajando à volta da sua cama ou catre, se libertaram, calcorreando quilómetros e quilómetros a pé descalço para, em chaga cardíaca, alcançarem o pódio da sua Liberdade em Liberdade e pela Liberdade. E estes nunca a esquecerão um só minuto das suas vidas