António Cabrita e João B. Ventura
«Meu caro,
talvez a nossa época esteja dominada por um elemento chave que Baudelaire reflectiu nos dois últimos versos de um poema, vê lá tu, chamado “A Viagem”: “Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu – que importa? –,/ E no Desconhecido para achar o novo!” Mas creio pouco saudável este relativismo-sem-fundo, da mesma forma que poderemos gratamente dispensar outras inclinações da época como a ”afición” pela entomologia e os pântanos. De igual, este retorno ao acirrado das identidades e dos nacionalismos merecem-nos todas as reservas, ou melhor, todo o repúdio. Eu, na minha campa, levarei comigo pelo menos três livros do Michaux e um do Lorca…
António Cabrita»
«Caro amigo,
citando Baudelaire, dizes que dispensas as inclinações desta nossa “grande época” em que muitos, ao invés de afrontarem o vazio da actualidade, se deixam arrastar naquele mesmo vórtice que Allan Edgar Poe tão bem descreveu no conto «Uma Descida ao Maelstrom» o que, bem vistas as coisas, não deixa de ser uma viagem, só que uma viagem ao Inferno em que o mundo se vai transformando se não formos capazes de nos rebelar contra aquilo a que chamas “relativismo-sem-fundo”, que é um outro modo de dizer niilismo. Por isso, aos versos de Baudelaire que citas, prefiro estes onde ele diz que “os verdadeiros viajantes são os únicos que partem/ Por partir; leves, como balões/ Nunca se afastam do seu destino,/ E sem saber porquê, dizem sempre:
Vamos!”
E por falar em balões, conto-te que, ontem à noite, fui ver subir um balão gigante que haveria de elevar nos céus de Portimão uma trupe de trapezistas celebrando o centenário da cidade. Mas por causa da brisa que soprava de norte, não subiu tanto o balão como eu desejava ver. Talvez por isso não vi passar o herói Ardan que viajou cinco semanas no balão de Jules Verne, nem passou o balão que elevou Roberto Walser sobre Kaliningrado, nem sequer o balão de Vila-Matas, porque esse tem andado a pairar sobre os telhados de Montevideu. Tivesse eu visto qualquer desses balões e ter-me ia elevado nele a ver se avistava um bando de colibris negros que, dizem-me, soltaste desde Maputo.
Mas para que não me digas que eu ando sempre aéreo como os balões, conto-te que, num destes dias, ao sol do meio-dia e ao sonho, meti-me ao volante do Chevrolet de Álvaro de Campos pela estrada de Sintra, para ir visitar os lugares llansolnianos: a “intensidade estimulante de Colares” e a velha Estalagem da Raposa. Fui a Sintra, mas enganei-me na viagem, porque a casa que Maria Gabriela Llansol habitou e onde se “sent[ia] na casa de um Poeta – ela própria – a escrever dentro de si», embora ainda lá estivesse já não era a mesma, pois a sua alma mudara-se para o bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, aonde hei-de ir não num Chevrolet emprestado mas no eléctrico 28, para ver “a casa grande, enorme [sonhada por Llansol], que conteria os perdidos – os objectos, cenas da [sua] vida –, os encontrados e as transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder ‘audaciar-se’, exprimir-se em obra que fique em toda a parte_______».
Seja no Zeus, aquele cargueiro holandês no qual Manuel Teixeira Gomes embarcou em Lisboa rumo a Orão e depois ao exílio (e que dá nome a esta revista), ou num balão de ar quente quando o céu permite, ou num Chevrolet mental, ou caminhando ao longo da Muralha da China, ou pedalando uma bicicleta pelo Grande Sertão adentro, ou, e sempre, através do pensamento audacioso expresso na literatura, tudo são modos de viajar.
João»
«Grande Ventura,
há uma história que conta o Rafael Argullol, na página trezentos e cinquenta do seu Las Pasiones… (e talvez nos faça falta uma enciclopédia que compile as páginas trezentos e cinquenta de todos os livros do mundo e o seu impacto nas nossas mentes) e que sempre me impressionou: os japoneses que ficaram escondidos, isolados, nas ilhas Filipinas, ao terminar a Segunda Guerra Mundial, e que aí permaneceram por mais três décadas, sem terem descoberto que a guerra havia acabado, gozavam todos de uma coisa em comum, quando foram localizados e contactados: todos pareciam muito mais jovens do que eram na realidade. Como haviam perdido completamente a noção do tempo, isso tinha-os conservado jovens. Leste bem: a desaparição da consciência do tempo tinha-lhes mantido uma margem quase sobrenatural de juventude.
Este é outro tipo de viagem que a literatura nos permite, na sua imersão o tempo dilata-se ou desaparece. Por isso, reduzir a literatura aos itens da actualidade, aos autores da moda, é um contra-senso, a literatura corre contra o tempo. A que nos interessa pelo menos. Façamos uma revista que não se queira lebre das novidades mas que vá ao que interessa: aos autores de todos os tempos que, mesmo em trânsito, em viagem, tiveram por lema o “Detém-te instante!” é o elemento inaudito que podemos acrescentar ao panorama. Nós somos contemporâneos tanto dos poemas de amor do antigo Egipto como dos poemas do Oceano Vuong, o autor vietnamita que há sete ou oito anos ganhou, e muito justamente, o Prémio T.S. Eliot.
António»
«Cabrita,
esse outro tipo de viagem de que falas, é a viagem que sobrevive ao tempo e cujos itinerários permanecem visíveis e duradoiros no papel a contrapelo das falsas representações da literatura da moda, tão fúteis, mas que enchem os escaparates das livrarias. Esse o motivo que nos leva a empreender esta viagem de papel. Para, em trânsito entre Portimão e Maputo e Maputo e Portimão, estarmos em todo o lado ao mesmo tempo, experimentando, umas vezes, o gozo da viagem, e outras vezes, o desassossego. Para nos determos diante das ruínas do mundo, pois para isso servirá também esta revista.
Tanto podemos caminhar ao sol com Walter Benjamin numa praia de Ibiza ou perdermo-nos na noite veneziana, como caminharmos sobre a terra devastada da Ucrânia, premonitoriamente antevista por T. S. Eliot e fotografada por João Porfírio. Eis, como dizes, o inaudito desta revista que ora mostrará o Céu ora o Inferno.
Tivesse o livro de T. S. Eliot a página trezentos e cinquenta, e eu abri-lo-ia agora aí. Mas não, como o Erza Pound lhe cortou umas centenas de versos, The Waste Landfica muito aquém em quantidade de páginas. Quando a Europa vivia ainda um pós-guerra devastador com milhões de mortos, Eliot escreveu esse poema para escorar as ruínas da guerra e a sua própria ruína, criando um abismo na linguagem. Um século depois do que foi contado nesse livro, parece que estamos no mesmo lugar. Mas agora a guerra na Europa ainda mal começou.
João»
«Meu caro,
como queres fazer um texto sobre Veneza, deixa que te conte esta que encontrei num rodapé de um livro de ensaios do Seferis (tem três ou quatro ensaios sobre poesia impagáveis e cujo sumo não deixa de escorrer), uma informação que sempre me arrepiou. Traduzo (do castelhano): «Em 1687, um golpe de canhão do veneziano Francesco Morozzini (ou Morosini) fez voar pelos ares a parte central do Parténon». Portanto, o homem ter nascido no seio da beleza que em Veneza é patente não lhe acrescentou um mínimo de sensibilidade para o património alheio. O espírito dele era constituído por janelas cegas. É descoroçoador. Só nos resta insistir e insistir e insistir para que pelo menos alguns prefiram ser fuzilados a lesar o diamante alheio. Como diz o Seferis, adiante: “Pensamento humano e sensibilidade humana não significam nunca verdade pura, mas sim uma mescla de verdade e erro. Por isso é correcto que se mudem as opiniões, para que mude ao menos o erro, que nunca se encontrará ausente”. Conseguirmos mudar ao menos os erros, parece-me uma boa meta para o que nos propomos.
António»
«Companheiro de viagem,
Hás-de ir, então, comigo a Veneza para veres a cidade flutuada por Joseph Brodsky e nos “perder[mos] nas suas vielas e ruas noveladas que nos convidam a decifrá-las, a segui-las até ao fim impalpável, pois geralmente terminam na água”. E, uma vez lá, perdidos na noite veneziana, debruçados no parapeito de uma ponte de pedra sobre as águas de um minúsculo canal, recitaremos os versos que Rainer Maria Rilke dedicou a Veneza: “Porque o belo é apenas o grau do terrível que ainda podemos suportar. Todos os anjos são terríveis” (Elegias de Duíno). Não é isto também o que nos propomos suportar com esta revista que, nalguns dos fragmentos que a compõem, não teme ser sobrevoada pelo anjo do quadro de Klee?
João»
«Grande Ventura,
devemos fugir de muitas regras. Repara, a Santa Inquisição permitiu-se ordenar um dia que se cortassem as asas dos anjos de El Grego porque as suas medidas não eram ortodoxas, mas só o pintor sobreviveu. É como nas viagens que nos trazem ganho, se um planeamento mínimo não tolher a oportunidade e a ocasião o mais interessante chegará da perspectiva inesperada que nos deixa ver a urdidura no avesso da tapeçaria… Haja rigor, sem o espartilho académico que tantas vezes sacrifica no Altar da Nadificação as citações do vazio… Não estamos aqui para cumprir protocolos mas para sermos fiéis a uma emoção mais benéfica, quiçá mais salvífica: lembrar que a arte é apenas uma hipótese humana, ainda que uma das mais dignas (o Amor é outra). Entretanto, o cânone do eterno e do absoluto (que se permite ditar regras) é apenas a Virgem da Impostura, ilusão ou insídia que a IA, aliás, começa a varrer. Conseguirmos orquestrar os diferentes mosaicos de modo a que do conjunto ressalte uma obra de sensibilidade é a maior ambição a que podemos almejar…
António»
«Camarada,
num aforismo do Livro das Passagens escreve Walter Benjamin que “o traço é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo que esteja aquilo que a evoca. No traço, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela apodera-se de nós”. Não é isso, também, o que perseguimos ao caminharmos, como no conto de Borges, neste jardim de caminhos que se bifurcam, retraçando ideias, lugares, pessoas, em que a noção de espaço convida o leitor à viagem, umas vezes, através da geografia, e outras vezes deambulando por aquilo a que Ernst Bloch chamou “pensar efabulante”, numa tensão que mistura a curiosidade pelos lugares trazidos de longe, a memória e as formas literárias, criando formas de pensamento à maneira do passeante W. G. Sebald?
O que procuramos nesta viagem de papel que agora iniciamos é retraçar lugares, torná-los próximos por mais longínquo que esteja aquilo que os traçou, interpelá-los e deixar que eles nos interpelem. E ao fazer aparecer o longínquo, por mais próximo que esteja aquilo que evoca, darmos a ver e a sentir a sua aura, não para fazer a cartografia de territórios físicos, mas para, do conjunto de formas – crónicas, ensaios, ficções, poemas, fotografias, ilustrações – que compõem a revista, retraçarmos uma cartografia geo-poética.
João»
«Caríssimo,
retraçar, dizes bem. E não por acaso se chama Traços, esse caderno de guerra em versos convulsos que a russa Galina Rymbu escreveu e que tentei “retraçar”, em versões que espero respirem, para acompanhar as magníficas fotos do Porfírio. Ontem adormeci a ver um filme menor, uma fita de acção, descartável. Mas a páginas tantas (como dizia um amigo meu, revisor nos jornais, o saudoso Alfredo Canana), há sempre algo que fica. Coloca o protagonista ao homem perverso a quem vai castigar o seguinte dilema: «Há duas espécies de dor, neste mundo. A dor que magoa e dor que transforma. Hoje você pode escolher…». Espero que a resposta do leitor face a este material que reunimos, com a feliz cumplicidade de uma tribo buliçosa, seja a escolha moral de encetar as acções que reflectem a dor que transforma.
Toda a vida, a espaços, me senti recomeçar e desta vez não é excepção, ao pesar o resultado final desta viagem que empreendemos fazer desde quase os antípodas.
Obrigado, acho que merecemos uma garrafa da melhor safra de Cabrita, reserva. Um abraço do teu amigo
António»