MEDITERRÂNEO, ONDE AS FRONTEIRAS SE ENCONTRAM

Fausta Cardoso Pereira

I. O MEDITERRÂNEO NÃO É APENAS UMA GEOGRAFIA

SOMAYA, 16 ANOS, AFEGÃ. Numa tarde quente de Junho, guia-me por entre olivais, indicando-me o caminho de terra batida por onde sigo com um carro alugado que espero devolver sem um arranhão. Manda-me parar num local alto para que eu possa ver bem o mar Mediterrâneo, o mar que aponta com o dedo indicador, aquele mar que dois anos antes atravessou com a família para chegar ao campo de Moria, em Lesbos, onde nos encontramos. O campo, agora queimado, é uma geometria quadrada, cinzenta e branca, um espaço despido que julgo pequeno para os 13.000 refugiados que ali aguardavam por uma resposta da União Europeia. A 9 de Setembro de 2020, o campo ardeu e Somaya conta-me que, enquanto fugia com a família das chamas, parou na estrada, num de repente, com um aperto no peito. Pensou em voltar para trás, e seguir contra a corrente dos refugiados que corriam. Queria voltar à sua tenda para recuperar o diário, um caderno onde escreveu sobre todas as suas viagens, todas perigosas, e as que ela percorreu, tal qual a jornada do herói, caminhos cheios de provações e obstáculos. Escreveu sobre a fuga do Irão, país que acolheu a família quando Somaya tinha apenas um ano de idade; escreveu sobre as suas montanhas geladas e as noites em que tentava dormir enquanto a neve lhe cobria o corpo; escreveu sobre a Turquia, país onde permaneceram por apenas 30 dias e onde tiveram de fugir da polícia; e escreveu sobre as duas tentativas de travessia daquele mar que ela apontou momentos antes, o Mediterrâneo, e que, a seguir às montanhas do Irão, me descreveu como o segundo momento mais perigoso da sua vida.

A grande viagem de Somaya ainda não chegou ao fim. Ela e a família foram alocados a um campo de refugiados a que chamam de Moria II. Assim como
todos os outros refugiados, encontravam-se à espera de asilo na União Europeia, um tempo que põe à prova a paciência e resiliência, um tempo suspenso numa letargia de tédio onde não há absolutamente nada para fazer, nem nada que possam fazer para acelerar este período. O diário ardeu. O fogo destruiu o que esta jovem considerava de mais importante na sua vida. Mas as memórias podem ser registadas de diversas formas. Nas semanas seguintes trabalhámos juntas para compilar essas memórias num pequeno filme de animação. Com a ajuda de um psicólogo, de uma animadora de cinema e de um jovem do Nepal, compusemos em imagens o que antes Somaya traduzira em palavras. Desenhou e recortou em cartolina os personagens, o pai, a mãe, dois irmãos, a irmã e ela. Colocou-os em fila tal como seguiram na vida real, o pai à frente, depois a irmã, um dos irmãos, ela, o outro irmão, e a mãe, a fechar esta composição. A família que ela fez questão de vestir com as cores reais, o vestido verde da mãe, as calças castanhas do pai, os hijab pretos das mulheres. Pormenores que carregam significados.
Num pequeno filme de animação com pouco mais do que 3 minutos e 30 segundos, Somaya conta os perigos pelos quais atravessou. Esses pormenores que são seus e da sua família, são reconhecidos pela jovem Tahera e pela Nour, duas refugiadas que conheci no mesmo ano, em outros campos de refugiados, também na Grécia. As razões são também as mesmas. Fugir da guerra, das privações, da discriminação.

“O Mediterrâneo não é apenas uma geografia”, escreveu o geopoeta Predrag Matvejevitch. O Mediterrâneo é a história de Somaya, de Tahera e de Nour, e das 13.000 pessoas que viveram em Moria (e das que continuam a viver em Moria II). Cada história com as suas particularidades e detalhes, mas que, se um dia caírem no esquecimento, apagam a História do Médio Oriente e do norte de África. Não tenhamos dúvidas de que, nos campos de refugiados na Grécia, há um capítulo importante da história da humanidade, ou da falta dela.

II. NA EUROPA AS MENINAS PODEM ESTUDAR
É isto que me ocupa desde 2021: ensinar cinema de animação a jovens refugiados na Grécia para depois os ajudar a contar as histórias que eles querem contar. Primeiro trabalho atrás da secretária, à procura de financiamento, escrevo propostas de apoio para possíveis financiadores; depois vou para o terreno, para a Grécia, onde passo meses com estes jovens, ouvindo as suas histórias e trabalhando com eles, em equipa, num processo de aprendizagem a que chamamos de learning by doing – aprender enquanto se faz. Segundo dados do Greek Ombudsman for Children’s Rights, 86% das crianças em campos de refugiados na Grécia, não têm acesso ao sistema formal de educação. São as organizações sem fins lucrativos que se ocupam de acções de educação não formal, como o ensino de inglês e alemão, ciências, matemática, e que promovem actividades de desporto ou de capacitação em multimedia, como é o meu caso. Estes jovens têm tempo, e têm vontade de aprender, em voltar a ter rotinas, um propósito enquanto a espera pela tal resposta da União Europeia não termina. Quando a Tahera veio ter comigo, já sabia bem que história queria contar. Estava tudo muito alinhado na sua cabeça, e trazia uma equipa de amigas para a ajudar. Mesmo assim, foram precisos três dias para encontrarmos a forma certa de contar aquela história.

A Tahera tinha 16 anos, afegã, com um percurso de vida muito parecido ao de Somaya. Também fugira do Irão, país onde, segundo me contou, as jovens afegãs têm um tratamento diferente das iranianas. Na escola, por exemplo, as afegãs estão proibidas de praticar desporto. Ainda que estivesse num campo de refugiados, à espera de asilo para poder viver na Alemanha, Tahera sentia-se uma privilegiada, e encarava todas as incomodidades do campo como condições provisórias. Ela imaginava-se já na Alemanha, sentada numa sala de aulas. “Na Europa, as meninas podem estudar”, disse-me. Fazer um filme em animação é tudo o que uma jovem de 16 anos não quer. O processo é lento, repetitivo, chato. Tahera e as amigas faziam turnos e trocavam de tarefas. Suportavam o calor do Verão grego, sem ar condicionado, e quando não havia elementos do sexo masculino na pequena sala de trabalho, tiravam os hijabs e arregaçavam as mangas. Todas as tardes chegavam determinadas em alcançar um objectivo definido e comum a todas. “Na Europa as meninas podem estudar”, repetiam.
No pequeno filme que fizeram, um canhão atinge um pássaro, aquele que sedestaca do bando por voar mais alto. Este pássaro representa as ambições das jovens afegãs no Afeganistão, impossibilitadas de ir à escola pelo governo Talibã. Wings of Hope é o título deste filme. Desde 2021, foi exibido em festivais de cinema em todos os continentes, e premiado em Itália e no Chile. 166 Tahera assume-se como activista pelos direitos das mulheres, em particular das jovens, no Afeganistão. Tem agora 18 anos e mora na Alemanha, onde quer continuar os seus estudos para um dia regressar a Cabul e ajudar a reconstruir a sua cidade natal. O mar Mediterrâneo parece manso mas é, talvez, de todos os territórios marítimos, o mais perigoso e mortal. As pessoas que lhe sobrevivem não páram de sofrer mas, também, não páram de sonhar e de construir caminhos que materializam as suas esperanças.

III. DAQUI NÃO PASSARÁS
Em 2021 mergulhei pela primeira vez nas águas que banham a costa de Lesbos, numa praia de pedras que desafiam o equilíbrio de qualquer pessoa habituada a areias finas da costa do Atlântico. Ali, o mar é calmo, turquesa e morno, e as pedras são apenas um pormenor, principalmente se tivermos em conta os quase 40ºC do Verão grego. A praia não era organizada, o que quer dizer que não tinha os habituais chapéus de sol e bares a exigirem o pagamento ao banhista. Talvez por isto, não era muito frequentada e, a grande maioria das pessoas eram locais ou voluntários das muitas organizações sem fins lucrativos que desenvolvem trabalho na ilha. Fui avisada de que naquele verão, os gregos voltavam às praias de Lesbos, depois de vários anos sem lá porem os pés. Disseram-me que pararam de as frequentar porque era comum encontrarem corpos na costa, refugiados que não sobreviveram à travessia e às condições desta, geralmente barcos sobrelotados e em condições impróprias para navegação. Quando mergulhei nas águas translúcidas, as pedras no fundo eram brancas, grandes, umas redondas, outras ovais. As pedras pareciam crânios sobrepostos, vestígios de corpos que ao longo dos séculos foram ficando, evidências de todos os conflitos que o Mediterrâneo tem testemunhado. A cabeça de um grego era considerada um troféu, aquando da ocupação do império Otomano. As muralhas da fortaleza de Mytilene, a cidade principal na ilha de Lesbos, são o resultado da ocupação dos povos naquele território, desde os Bizantinos, Romanos, Otomanos. Embora as fronteiras políticas sejam agora outras, com outros tratados e princípios humanitários, os destroços continuam a ser os mesmos, e sentem-se, também, nestas águas, ou principalmente nelas. Morreram, no mar Mediterrâneo, 15,850 pessoas desde 2015.1616 International Journal of Refugee Law, Volume 34, Issue 1, March 2022. Hoje, a bandeira grega ergue-se e o governo Grego desenhou uma estratégia de defesa, como uma actualização da protecção daquela muralha: a instalação de uma barreira flutuante na passagem marítima entre a Turquia e Lesbos, como medida para
dissuadir o fluxo de requerentes de asilo que chegam do Médio Oriente e do norte de África.

Se prestarmos atenção ao subtexto, a geografia do local revela as tensões que
ainda se fazem sentir. Vivemos o outro lado da moeda; o Estado Grego, reconhecido como tal em 1830, parece agora gritar a todas as civilizações que antes ocuparam o território, e com o coro da União Europeia: “Daqui não passarás”.

IV. O MEDITERRÂNEO É UM COLECCIONADOR APAIXONADO
SOMAYA passou. Tem agora 18 anos e vive com a família na Alemanha, perto de Colónia. Depois de 3 anos em Lesbos, tenta recuperar o tempo perdido sem escola para que possa seguir estudos superiores. Reencontrei-a em 2023, dois anos depois de termos terminado o seu filme – Eyes full of Hope. Tal como o filme de Tahera, hope (esperança) foi uma palavra cuidadosamente seleccionada para figurar no título do filme. Encontrámo-nos em Itália, para o Mazara del Vallo Film Festival, na Sicilia. O seu filme fora seleccionado para competição, e Somaya foi uma das convidadas de honra. Mazara del Vallo é uma pequena cidade à beira do Mediterrâneo com um centro histórico conhecido como Casbah, tipicamente medieval e caracterizado por um labirinto de ruas com casas pequenas. Após um violento terramoto em 1968, a cidade ficou praticamente ao abandono. Foi então que emigrantes tunisinos começaram a chegar transformando o Casbah no coração da emigração árabe na Itália. À primeira vista, parece inexplicável este movimento, afinal a região fora devastada reforçando a situação de vulnerabilidade e desemprego que os italianos vinham vivendo nos últimos anos, e que acabou por desencadear a emigração destes. E, no entanto, a comunidade tunisina ocupava este território, olhando-o como um lugar de oportunidades. Em 1970 a comunidade tunisina tornou-se num pilar estrutural da sociedade siciliana, representando actualmente 10% da população na ilha. Existe até uma escola no Casbah gerida pelo governo tunisino, onde se fala apenas árabe efrancês. E esta realidade espelha-se em outros exemplos.


Numa tarde, quando andava pelo Casbah com a Somaya, o Almoadem iniciou a chamada para a oração. Somaya abriu os olhos, com ar de espanto. Depois, tirou o telemóvel do bolso e fez uma videochamada para a mãe. “Há três anos que eu não ouvia o Almoadem”, disse-me. “Como é possível? Estou a ouvir o Almoadem na Itália? Na Europa?”. Somaya parecia ter atravessado um portal mágico e entrado num local onde essa coisa das fronteiras não existe, como se fosse possível sentir-se em casa mesmo estando tão distante, numa cultura que, em princípio, é tão diferente da sua.

“O Mediterrâneo é um coleccionador apaixonado”, diz-nos Predrag Matvejevitch, e eu não encontro melhor exemplo para materializar esta ideia, que este encontro entre Somaya e o Almoadem em Itália. Mas não ficamos por aqui, porque como qualquer coleccionador, o Mediterrâneo tem sempre mais um elemento para nos mostrar. Logo ao virar a esquina, demos com a Igreja de San Francesco, uma obra do Barroco italiano. Entrámos e Somaya vageou com calma. “Nunca entrei numa igreja”, revelou- me, “Tantos detalhes nas paredes!”.
Eyes full of Hope venceu a categoria de “Student Jury Prize” no Festival de Mazara del Vallo. Se deixarmos o Mediterrâneo desenhar a sua história, construindo a sua própria narrativa sem a intervenção de linhas que delimitam espaços territoriais, então podemos ser verdadeiramente surpreendidos. Se o Mediterrâneo nos atrai enquanto geografia, com as suas aldeias, portos, praias, fauna, gastronomia, monumentos, é porque este mar nunca esteve sozinho, e sempre foi lugar de travessias e encontros. As migrações são tão naturais nos animais como nos Homens, e a liberdade de pensamento e capacidade de construção e reconstrução serão sempre proporcionais à liberdade de circulação. Ameaçar a diversidade do Mediterrâneo, é forçar uma
história muito diferente daquela que podemos ler nos livros mas, principalmente, diferente da história que encontramos nas ruas e nas pessoas com quem nos cruzamos.

O Mediterrâneo, será sempre um lugar onde as fronteiras se encontram, ou seja, um lugar de oportunidades para o homem exercer a empatia, a criatividade, e lutar pelos direitos humanos.