Luis Serpa
NÃO TENHO COM O MAR uma daquelas relações mágicas, misteriosas, esotéricas, melosas, grandiloquentes, enjoativas de tão «profundas». A uma repórter do (creio) Paris Match que lhe perguntou o que sentia quando deixava de ver terra, Tabarly respondeu «Quando deixo de ver terra? Não sinto nada») . O mar é parte de mim e eu dele, como o meu nariz, o meu braço direito ou este cabelo, que insiste em recuar. O mar é o que é: o meu local de trabalho, um ambiente do e no qual sou o elo mais fraco, mais frágil e mais transitório. Se a minha embarcação afundar demorará muito mais tempo a desaparecer do que eu. Talvez seja por isso que gosto tanto do que faço. É um desafio físico, psicológico e sobretudo emocional.
É como a pesca ao grosso, Big Game Fishing no original: o objectivo não é pescar um peixe muito grande. É pescá-lo com a linha mais fraca possível. Imaginem apanhar um peixe de trezentos quilos com uma linha cuja resistência é de vinte, por exemplo. O meu trabalho é semelhante, só que não pesco. Navego, trato de barcos, levo passageiros, clientes ou tripulantes de um lado para o outro, sãos e salvos. É tudo.
Não me peçam declarações, declamações de braço no ar e mão no peito. Gosto de estar no mar como outros gostam de estar na sala de reuniões do conselho de administração da empresa que administram. E gosto também de estar nos sítios aonde o mar me leva. Conheço pouco o interior da maioria dos países que visitei. Só lhes conheço as costas, os portos, os cabos, as correntes, os baixios, os pontos conspícuos, as marés e os bares, claro, os que são simultaneamente bonitos e perto do cais aonde estou atracado. É isso que me interessa: evitar um rochedo, distinguir uma bóia encarnada de um anúncio luminoso, fazer uma manobra bonita ao atracar. Um marinheiro é por natureza um esteta. (a razão é simples: tem tempo. A estética está tão ligada ao tempo como o espaço). Confunde a forma e a função – porque não as sabe distinguir, verdade seja dita. As embarcações não são como as mulheres: se não forem bonitas não funcionam bem. As mulheres têm mais sorte. Mesmo feias são – ou podem ser – maravilhosas. Uma embarcação não é assim. As linhas têm de ser harmoniosas. Têm de nos inspirar um sentimento de admiração pelo arquitecto que as desenhou, pelo estaleiro que as construiu, pelo homem que as governa. Com uma embarcação feia não se pode fazer o que se faz com uma mulher idem. Não é tão bom.
II
Escrevo estas linhas em St.-Martin. Acabo de passar por três tempestades em menos de uma semana. A pior delas foi uma das piores da minha vida, ocupará talvez um lugar no pódio ou na lista das cinco mais violentas do concurso no qual todos os marinheiros participam: o dos maiores arraiais de porrada pelos quais passámos. As tempestades são muito diferentes umas das outras. Nos trópicos e no Mediterrâneo são súbitas, imprevistas e por isso provocam mais estragos do que as do atlântico, que têm a gentileza de se anunciar, de se fazer preceder por cirrus, umas nuvens altas que parecem caudas de cavalo ou por uma ondulação que vai progressivamente aumentando. Aqui não é assim. Aparecem vindas do nada com uma carga de água que daria para encher as barragens todas de Portugal em dois dias. Quando são curtas chamam-se squalls, não sei o termo em português. Creio que é aguaceiro, mas não tenho a certeza. A de sábado não foi um squall. Foi um temporal à séria. Passei mais de cinco horas ao leme com uma chuva que não me permitia sequer abrir os olhos, de tão forte que vinha.
O elo mais fraco da cadeia. «Aqui ao leme sou mais do que eu.» Sou uma teimosia, um instinto de sobrevivência que se enganou de morada, uma rede de sensores capaz de ler o que os olhos não vêem, os ouvidos não ouvem e a pele – coitada, embrulhada em quatro camadas de roupa, todas encharcadas – não sente. Talvez seja esta fraqueza que me liga ao mar, porque navegar é fácil. Basta saber. Há quem navegue em torno de três bóias o dia todo. Eu prefiro navegar em torno dos três cabos (nunca o fiz, apresso-me a esclarecer. Só passei um, o da Boa Esperança). Prefiro ser o elo mais fraco da cadeia porque todos os dias me vingo disso: quando finalmente desço para trocar de roupa, quando chego a um bar, quando explico a uma mulher que a minha linha é infinitamente mais fraca do que ela, mas ela não conseguirá quebrá-la (normalmente consegue, mas isso é outra história). Quando afino uma vela e ganho meio nó de velocidade. Quando faço uma manobra que sai bem. Porque quando perdemos é azar e quando ganhamos é sorte. O mar é um grande equalizador. Não suporta arrogâncias nem perdedores. Àquelas corta-lhes a cabeça, a estes engole-os. No mundo das regatas oceânicas – a mais pura e bela forma de navegação – diz-se que não é o melhor que ganha uma regata, é o que faz menos erros. Navegar é gerir erros. Gerir incertezas, dúvidas, fraquezas e fazer dessa mistura a força que me permite estar agora no Yacht Club de Marigot a beber um rhum punch horrível enquanto espero uma lasagna provavelmente fraca também.
Sobrevivi, não apesar de ser o elo mais fraco mas por ser o elo mais fraco. E sobreviverei à próxima exactamente pela mesma razão. (Que venha depressa.)
III
Agora trata-se de gerir os resultados, as avarias, as consequências. Também isso faz parte do mar porque o mar mete-se pela terra adentro, vai para onde eu vou, anda comigo seja aqui, em Genebra, em Palma de Maiorca, em Lisboa ou na lagoa do Alqueva. É parte de mim e eu dele, lembram-se?
É preciso dizer que gosto de tratar de uma embarcação ferida – ou de boa saúde e assim a manter – gosto de saber que um dia irá melhor porque tratei dela, gosto de lhe avaliar as maleitas e escolher os melhores remédios, os médicos mais indicados, as enfermeiras mais bonitas. (a beleza faz parte da vida de um marinheiro como o sal do mar.)
IV
O mar é o mundo, o meu. Não é muito, mas é tudo o que tenho. O objectivo destas linhas é partilhar um pouco desse pouco.
Para a Ana Isabel, que é o elo mais forte; E para o Hugo P.