Norberto Lopes
Norberto Lopes, jornalista do Diário de Lisboa, visitou Manuel Teixeira Gomes, em Bougie, em 1939. Da conversa intimista que mantiveram durante dois dias resultou a obra O Exilado de Bougie, da qual transcrevemos um excerto do Prefácio, publicada em 1941, ano da morte do Presidente que elevou a sua terra – Vila Nova de Portimão – a cidade, em 11 de Dezembro de 1924.
COMEÇOU, ENTÃO, A TOMAR VULTO no meu espírito a ideia de visitar um dia Teixeira Gomes. Faltava só que o ensejo se proporcionasse. Cheguei, até, a prometer-lhe a visita, confiado, não sei porquê, em que mais cêdo ou mais tarde havia de aportar a Bougie, como aportei, nas minhas andanças de jornalista. E o acaso, que é o Deus dos reporteres, levou-me um dia até junto de Teixeira Gomes.
Convidado pelo governo francês a acompanhar a viagem de inspecção de Daladier à Argélia e à Tunisia, entre cem jornalistas de todo o mundo, logo me acudiu a idéia de passar por Bougie no regresso. Um acontecimento internacional novo, porém, a visita de Chamberlain e Halifax a Roma, em Janeiro de 1939, levou-me à Itália, afastando-me do meu desejo. Foi nessa altura que Pedro Bordalo interveio insistindo comigo para que fizesse a viagem de regresso pelo norte de África, não deixando de ir a Bougie visitar o antigo presidente da República. Tudo isto foi rápido e sugestivo como um sonho. O avião simplifica as coisas na nossa época. De um salto fui de Argel a Marselha e dali, noutro salto, a Roma. Apagados os ecos da triunfal recepção que os ministros ingléses tiveram na Cidade Eterna, tomei uma bela manhã, depois do pequeno almoço, o avião no aeroporto de Ostia e desci à hora do almoço no aeroporto de Tunis. No dia seguinte um aparelho da «Air-France» deixava-me em Argel. Um esplêndido serviço de camionagem serve os pontos mais afastados do norte de África. Bougie fica, assim, a seis horas de distância de Argel em autocar.
Prevenido da minha chegada por um telegrama que Pedro Bordalo lhe mandara de Lisboa, pedindo-lhe que me recebesse, Teixeira Gomes encarregou o groom do hotel de me ir esperar ao autocar. Ou porque o garoto se entretivesse pelo caminho com outros da sua idade, ou fôsse pelo que fosse, não me apareceu ninguém à chegada. Eu ignorava que Teixeira Gomes habitava há sete anos um quarto de hotel e só alguns raros amigos o sabiam, embora continuasse a receber tôda a correspondência na posta restante, hábito que contraira durante as suas viagens e manteve até morrer. A sua vida no exilio estava, até então, envolvida de certo mistério que aguçava ainda mais a minha curiosidade de repórter. Desci no Transatlantique e só depois me resolvi a preguntar por êle. Teixeira Gomes realizara a ambição da sua vida, confessada numa carta a João de Barros, em que dizia: «a miragem do anonimato sorria-me e atraía-me com o enlêvo de outrora, e decidi voltar a correr mundo, abrindo o último capítulo da vida em termos de o tornar aprazível, despido de todo o género de ambição e vaidade, mundana ou espiritual. E assim tenho feito, empregando artes de ninguém saber ou suspeitar em mim o antigo chefe de Estado, o que me permite viver modestissimamente e em plena liberdade de movimentos. E, assim, a existência me tem corrido novamente propícia e feliz, não me parecendo que haja motivo para mudar de rumo, e alimentando vagamente a esperança de nêle seguir até o fim».
A sua existência, na verdade, decorria modesta e apagada naquele quarto desconfortável do Hotel de l’Étoile. Já então saia pouco. Ninguém dava pela sua presença em Bougie. Confundia-se com a população anónima da cidade. Viam-no passar, curvado ao pêso das recordações e dos anos, e cumprimentavam-no. Era um sentimento de respeito pela velhice que os obrigava a levar a mão ao chapéu. Poucos sabiam que era um antigo chefe de Estado. Conheciam-no apenas na farmácia, no quiosque dos jornais, na pastelaria e no correio.
Eu supunha que êle habitasse casa própria. As raras pessoas que topei àquela hora na rua de Trézel não me souberam dar nenhuma indicação. E mostravam-se, até, surpreendidas, quando as interpelava: «M. Gomès, ancien président de la République Portugaise, ne connaissons pas». E remeteram-me para o Comissariado da Polícia, onde um funcionário amável, apenas por dever do seu cargo, estava ao corrente de tudo: «Vive no Hotel de l’Etoile. Nunca teve outra residência desde a sua chegada a Bougie».
Confesso que a minha imaginação sofreu com a noticia e mais ainda quando fui encontrá-lo doente, mirrado, esquecido, sombra de si próprio, numa cama pobre e numa atmosfera triste, eu que me habituara a «vê-lo» numa dessas «villas» frescas e alegres, de arquitectura árabe, onde corre sempre um repuxo de água cantante, que se debruçam, entre árvores frondosas e tufos ridentes de verdura, a meio da colina de Bridja, sobre o casario branco e preguiçoso de Bougie. O nosso encontro teve certa emoção. Senti que a minha visita the fizera bem. A hospedeira, a boa madame Berg, disse-me que há muito tempo não o via tão animado, tão bem disposto, tão feliz.
Raríssimos portugueses – suponho que apenas um comerciante nosso compatriota estabelecido no norte de África e eu o foram visitar a Bougie. Não tinha, portanto, ocasião de falar português. Na manhã seguinte à da nossa primeira entrevista, quando cheguei ao hotel, encontrei-o, realmente, num alvoroço feliz: «- Sabe que a nossa conversa de ontem deu-me uma fome de falar português… Tôda a noite levei a sonhar em portugués… a falar português em sonhos e acordado…» Foi uma alegria para êle poder falar português, poder sonhar em português… Estava acostumado a sonhar só em francês.
Por volta das 4 horas da tarde, (levantava-se, em regra, às 4 da manhã) recolhia ao seu quarto, depois de tomar um chá de tília, e deitava-se. Era a hora em que o seu espírito, sempre cintilante, começava a apagar-se transitòriamente e a luz dos olhos a extinguir-se, como uma chapa de cristal que se velasse. Era a hora triste, a hora nevralgica da sua vida, a hora em que começava a cair lentamente sobre a sua memória o véu do esquecimento. Já não tinha corda, como êle dizia. E sumia-se no corredor, subia os degraus que levavam ao seu quarto, entrava, deitava-se. Do homem que fôra, desempenado, elegante, fidalgo de maneiras e de atitudes, restava aquela sombra. Ah! mas era ainda uma sombra encantadora, rica de seiva, cintilante de espírito, cheia de nobreza, impecável de orgulhosa dignidade. Pudesse eu traçar-lhe o perfil que fosse digno da sua personalidade requintada, sóbria e simples como a dum grego do século de Péricles, magnânima e brilhante como a dum principe florentino da Renascença. Infelizmente, escasseiam-me tanto o engenho como o barro indispensável a modelar-lhe o busto, ou sejam os elementos de informação de que não disponho para construir a linda aventura da sua vida. Alguém o fará, certamente com mais brilho, com mais propriedade e com mais cópia de pormenores edificantes do que eu.