ROBINSON

Pedro Teixeira Neves

I.

TÃO SEM SABER. UM QUANTO DE MEDO QUANTO DE ESTRANHEZA. Tudo em volta por ordenar, imerso num sem-sentido. Apenas o desarticulado das certezas, se as houvera. Desagregado corpo de ler o real, este informe, baço, verniz-lhaneza. Nada mais sabendo, só me restava o começar a viagem, cada passo sem rumo definido. É sempre o caminho o que mais conta; conto:

II.

Como vim aqui parar não sei. Não me perguntem, não me questionem, não insistam. Sei apenas que quando acordei dei por mim ofuscado por uma fortíssima luz branca, extremamente densa e opaca, que quase me cegou. Atingido por esse imenso leite, baixei de imediato a cabeça, cerrei os olhos e tentei aos poucos levantar-me. Porém, tamanha luminosidade fez-me cambalear pelo que me vi forçado a sentar-me uma outra vez. Não conformado, pus a mão em pala sobre a vista e lá fui, a pouco e pouco, tentando reabrir os olhos, tacteando o branco que lentamente ganhava formas, formas difusas, algo dançantes, bruxuleantes, veladas e indefinidas. Vultos, sim, eram vultos, insinuações de corpos, não mais do que vultos terei então visto, muito embora ainda pouco perceptíveis nos seus contornos desmaiados e rarefeitos.

Lembro-me de ter sentido calor, muito calor. Sim, o ar estava quente, abafado e ao mesmo tempo seco, golpeando a pele, estalando nos poros, sulcando as áridas paredes da garganta. Ouvi também barulhos de crianças, risos, corridas, pequenos gritos, e também, também… Um leve torpor de águas, um marejar! Isso, um brando ruído de ondas cavalgando as areias na inquebrantável persistência das marés. Sim, era o mar, ouvia-o, só podia ser o mar, com o seu cheiro característico, a algas e sal, um cheiro inebriante que me invadia de Verão. A custo e hesitante (como sempre, nunca tinha comigo os óculos escuros quando deles precisava) levantei-me então e olhei em volta tentando perceber o que me acontecera. Sonhara? Desmaiara por uma qualquer razão que desconhecia e agora tinha visões? Levei aos mãos ao pescoço, a desapertar o nó da gravata, abrindo de seguida o primeiro botão da camisa.

Como aqui cheguei, volto a frisar, já confessei desconhecer e se querem saber esse é um assunto que não mais me interessa. Sonhava? Sonho? Talvez… Sim, claro que sim, continuo, continuo o meu relato. Após séria e demorada luta, levantei-me enfim e, já em pé, resolvi tirar o casaco cujo peso, e em virtude do calor que se fazia sentir, não tardaria muito me vergaria e levaria de novo ao chão. Tinha razão a minha mãe, bem me avisara pela manhã, ao sair de casa: que iria fazer calor (Não ligues ao que dizem na rádio, os meteorologistas enganam-se sempre, olha que um dia destes ainda derretes…); as mães têm sempre razão. Como desta vez, como de tantas outras vezes, e por isso, como já disse, tirei o casaco e cheguei mesmo a arregaçar as mangas da camisa, desapertando o segundo botão na camisa já algo molhada pelo suor. Dispus-me, portanto, a sair do estranho e desconhecido lugar onde me encontrava. Uma só certeza me assistia nesse momento, teria de fazê-lo com extremo cuidado, não fosse escorregar e então, sim, ver as coisas mais complicadas. Porque era, na verdade, um piso muito escorregadio aquele!

      Não tinha tempo a perder. Decidi seguir em frente, na direcção de uma mancha azul, uma vez que atrás de mim, não muito distante, vislumbrava somente uma densa floresta na qual, certamente, e como adivinham, não me apeteceu aventurar. Avancei, pois, com extremo cuidado, ao longo de um perigoso e armadilhado chão passando entre dois renques de ervas negras ao vento, embora estas, espessas e tratadas, não dessem sequer sinal de virem a mover–se um milímetro que fosse. Pus ainda a hipótese de pelo meio de uma delas me adentrar, mas pensei depois que poderia perder-me e que, por conseguinte, melhor seria continuar adiante como havia planeado de início. Se aquele azul, um azul de recorte impressionista que em tons fortes conseguia discernir ao fundo, era de facto o mar, era aquela então a única direcção a tomar.

Creio que foi a melhor escolha até porque a minha sede aumentava e o calor não dava tréguas. A garganta mais e mais se assemelhava a uma rolha, tal como se estivesse com febre. Engoli em seco repetidamente. Ao mesmo tempo abri mais três botões da camisa e já só pensava em pôr-me em tronco nu. Logo em seguida, após um ligeiro declive no meu percurso, decidi deixar o casaco para trás, o casaco que até então trouxera pela mão apenas para de vez em quando dele me servir fazendo sombra. Não sabia exactamente, por essa altura, o tempo que demoraria até encontrar água. Teria, pois, que pouparme ao mínimo esforço possível, pelo menos até matar a sede que em mim crescia, galopante. Foi assim que retirei a carteira do bolso interior e deixei o casaco perto de um risco azul muito bem delineado, mesmo por debaixo de outras fileiras de espessas ervas negras que de vez em quando estremeciam.

Estranhamente, do lado oposto, igualmente, com uma simetria rigorosa, um outro traço se iniciava em sentido inverso e também ele azul. Olhei ao largo: nada, continuava a não conseguir vislumbrar as formas, na linha do horizonte tudo se diluía num branco difuso, opaco e semitransparente. Aqui e ali, apenas uns montículos de água, alguns de quando em quando cedendo ao declive onde se encontravam e deslizando até se desfazerem caindo para o vazio. Experimentei aproximar-me de um deles, mas um ligeiro estremeção na superfície onde me encontrava fez com que aquela água resvalasse e no seu percurso quase com ela me levasse. Acabei por desistir da ideia, pensando que seria demasiado arriscar-me à empresa.

      Não tinha ainda percorrido muito caminho e já se me apresentava pela frente o primeiro obstáculo digno desse nome. Diante de mim tinha agora um plano inclinado de forma triangular que certamente me daria muitas dores de cabeça e exigiria um esforço tremendo. Por via das dúvidas, achei melhor iniciar a subida deitado, agarrando-me com os dois braços de um e do outro lado. A pouco e pouco lá fui conseguindo, embora por duas vezes tenha escorregado temendo cair e assim desviar-me da rota que traçara.

Por fim, e após uma boa meia hora de esforços e suores, cheguei ao topo, e aí, ao contrário do que esperava, vi-me confrontado com um problema bastante mais complicado do que aquele que acabara de transpor. Abruptamente, o relevo apresentava-me agora pela frente uma queda quase a pique, e embora não fosse uma grande altura dava (como me deu) certamente que pensar sobre o próximo passo a dar. Então, não havia margem para erros ou falhas. A minha vida estava em causa. Voltar para trás foi uma hipótese que, confesso, me assaltou, mas logo dela desisti até porque a descida que vencera subindo não seria menos desaconselhável. Avancei já que nada tinha a perder. Como? Como se fosse o Tarzan, posso agora dizer-vos. Tal qual o homem macaco, nem mais.

Avançando até à borda do precipício, apercebi-me de que sob os meus pés se encontravam duas cavernas de fundo escuro e de cujas paredes despontavam uns grossos filamentos negros. Não, não eram lianas, nem encontrei nenhuma macaca, sequer a Jane… Com extremo cuidado encetei então a perigosa descida, um pé aqui, outro mais abaixo, segurando-me bem com as mãos nos tais bamboleantes filamentos que referi. Não foi nada fácil, tanto mais que do interior das ditas cavernas, compassadamente, me vi assolado por uns ventos que por mais de uma vez me fizeram pensar que não iria conseguir.

Mas consegui!

Extenuado e todo suores, após uma breve pausa prossegui o meu caminho. De vez em quando olhava para o lado e confirmei as suspeitas dos vultos que a princípio julguei ter visto. Eram mesmo pessoas que por ali andavam. Sim, agora podia até distinguir uma ou outra palavra trazidas pelo vento! Pessoas?!

Não tinha tempo para grandes considerações ou pensamentos. A sede começava a colar-me a garganta e até agora, dela, não vira sequer o rasto de uma gota, água pura, claro, que não aquelas gotículas que por ali soçobravam deslizando para os lados, para cima e para baixo. Contudo, não me detive, até porque o barulho de água que ouvia em fundo mais me aguçava a sede. Tinha a certeza de que era o mar, o mar que me salvaria. Ao contrário dos náufragos eu corria para chegar ao mar, para entrar nele e saciar o corpo no seu azul salgado.

Passei então por um pequeno vale e cheguei a um ponto em que o relevo se apresentava um pouco gretado e pintado – sim, pelo menos parecia tinta – de um vermelho vivo! Pastoso como se apresentava, e sob o risco de aí me atolar, não tive outra alternativa senão percorrer o seu desenho tentando contornálo. Sem justificação plausível, decidi-me pela esquerda, no que, para quem me conheça, pode efectivamente ser considerado uma questão de princípio, e caminhei um bom bocado até chegar a um ponto em que o vermelho inflectia novamente, ainda que mais abaixo, no sentido donde partira. Estuguei o passo e cedo me apercebi ter regressado ao ponto anterior, embora agora me encontrasse já no lado oposto. Apercebi-me disso porque reconheci um estranho corpo, redondo e meio esponjoso, levemente avermelhado, no qual já antes reparara.

Pude então retomar a minha marcha em busca do precioso líquido com que matar a sede. Caminhei, caminhei uma vez mais, e voltei a encontrar novo plano inclinado que depois começou lentamente a curvar no sentido descendente. Tinha já avançado durante mais quase uma hora e foi então que, ao fundo, vislumbrei aquilo que me pareceu um pequeno lago. Sôfrego, verdadeiro náufrago de um deserto, corri com quantas forças ainda tinha e desconhecia e em breve me saciei aproveitando ainda para refrescar o corpo.

Era salgada, aquela água, mas ainda assim permitiu-me reganhar forças.

Recomposto, achei por bem tomar aquele pequeno «lago» como referência,

até porque me poderia ser novamente necessário. Ainda sem saber onde estava, voltei ao caminho e em breve me surgiram pela frente dois magníficos e simétricos montes. Decidi-me à subida de um deles pensando que do seu cimo poderia avistar algo mais e desse modo talvez conseguisse situar-me. Assim fiz, sempre com muito cuidado até porque nesta zona, bastante lisa, o piso continuava escorregadio.

Não foi tarefa fácil. Passada uma outra hora, talvez, alcancei-lhe o topo, que terminava numa matéria mais rija, de um cor-de-rosa forte e com pequenas fissuras. Trepei com quantas forças me restavam e qual não foi o meu espanto quanto dou por mim a sentir um estranho e leve cheiro a leite. Bebi, bebi desalmadamente como um bebé que sôfrego sugasse até ao desespero o seio da sua mãe. Bebi, traguei o quanto pude, embriaguei-me de leite. Quando me saciei o leite, algo viscoso e pegajoso, corria-me pelo queixo, pelo pescoço, pelo peito. Limpei a boca com o braço, deitei-me de costas e sorri. A princípio sorri, depois comecei a rir, a rir muito alto, a rir de uma forma descontrolada, a rir de gozo, de prazer. Estava salvo!

III.

Depois caí em mim e como se subitamente acordando de um pesadelo, ao olhar para trás vislumbrei e percebi finalmente ao fundo, na direcção de onde viera, os traços da tua cara adormecida ao Sol, foi então que me apercebi: tinha-me perdido no teu corpo deitado sobre a areia de uma praia pousada no Verão. Desconhecendo de onde viera e que se tinha passado, o que nunca soube explicar, eu tinha acordado na tua testa e só agora, depois de alcançar o topo de um dos teus seios, o apercebia. Limpei novamente uma gota de leite que me escorria de um dos cantos da boca.

Desde esse dia, e depois de muito te percorrer, aprendi a sobreviver à tua superfície, sobre a tua pele. Aprendi-lhe os poros, os declives, as curvas, os sinais, as bifurcações, aprendi-lhe a rugosidade e os seus cambiantes, aprendilhe o cheiro e o sabor. Tudo em ti era água e lume, e eu não era incólume. Eu, sem sentido ou sextante, sem geografia ou mapa, apenas perda, coral à deriva, sem saber o porquê, o por onde, tão-só o por aí. Durante anos e anos, bebi o teu leite, bebi o teu ser, a tua vida, o teu calor, alimentei-me também de um ou outro resto de comida que de quando em quando te ficava agarrado ao corpo, e agora, agora que me habituei à tua quente geografia disponhome a viver nela para todo o sempre. Como se um parasita, sim, um parasita feliz, docemente atado ao teu destino por uma razão que nunca soube nem procurarei nunca saber.

IV.

Então acordei. O corpo pesado em suores. Olhei o relógio. Sábado. Sextafeira arruinara-me. Um copo levara a outro até ao naufrágio noite adentro. Fui à janela, o sol derramava corpos brônzeos pelo areal branco a perder de vista. A cabeça um ferro. Quis saber quem era, o que fazia ali, quem me abandonara. Olhei-me ao espelho. Um homem cansado, sonhos cansados. Levei as mãos aos olhos. Voltei a abri-los. Uma mulher bela, gomo, sorria-me em cetim. Senti-me uma ilha, um homem rodeado de silêncios por todos os lados.