UCRÂNIA DEVASTADA

Fotografias de João Porfírio

Com excertos do poema Tu es l´avenir, de Galina Rymbu, e dos ensaios Guerra aérea e literatura, de W. G. Sebald e Olhando o sofrimento dos outros, de Susan Sontag

O ANJO SILENCIOSO, ASSIM SE CHAMAVA O ROMANCE de Heinrich Böll, escrito no limiar dos anos quarenta, que descrevia o pulmão arruinado das cidades alemãs bombardeadas, na Segunda Guerra. O halo de realismo que emanava dos escombros tornava a sua leitura tão dramática que, conta W.G. Sebald, em Guerra Aérea e Literatura: «Esse texto, contaminado por uma melancolia sem cura, seria intolerável para os leitores da época, como a editora e seguramente até o próprio Böll acreditavam, tendo vindo, por isso, a ser publicado apenas em 1992 com quase cinquenta anos de atraso». É compreensível e não é, como a cicatriz de um fantasma que nunca fecha. E continua Sebald: «Além de Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Arno Schmidt e Peter de Mendelssohn, muito poucos autores ousaram mexer no tabu imposto sobre a destruição exterior e interior» que sucedeu à destruição das cidades bombardeadas pelos aliados.

Corajosamente, com menos tabus e sem se esquivar aos riscos pessoais, a poeta russa Galina Rymbu (1990) – um expoente da literatura russa dos últimos quinze anos, devido às posições que tomou contra a cruzada ultraconservadora que se apoderou do país, o que a obrigou a refugiar-se em Lviv, na Ucrânia, terra dos seus ancestrais, com o marido e o filho – assistiu e sofreu na pele a invasão da Ucrânia pelos russos, e testemunhou na poesia, em versos gaguejantes, esse inferno. Esse caderno de guerra, intitulado Traces, foi editado pela primeira vez, em Dezembro de 2023, na antologia francesa Tu es l’Avenir (Éditions Vanloo).

Na contracapa deste livro escreveu Maria Skalova, a sua tradutora: «É um livro ao contrário. Começa com a guerra actual na Ucrânia. Narrado por quase-cadáveres. Pessoas “enterradas” que sentem o chão a tremer sobre o espaço prisional do seu refúgio. No resto do livro, lemos sobre as esperanças e utopias do passado e exumamo-las. A infância de Galina Rymbu foi passada na Rússia pós-poeirenta dos anos 2000. Um mundo que sobrevive com os resíduos contaminados de outra era. Foi lá que ela criou uma linguagem poética de combate, que todos pudessem entender. Uma linguagem carnal para recuperar os nossos corpos; uma linguagem intelectual para construir o futuro. Poesia que olha para o futuro.» A própria Skalova é descendente de russos e a tradução foi feita sempre em diálogo com a autora, sendo a montagem e escolha dos textos assumidas pelas duas, o que torna a tradução muito confiável.

TU ES L’ AVENIR, de Galina Rymbu

I
depois de te ter encontrado nos confins da dor, experimentas/ essa dor vinda ainda de mais longe/ medicamentos, um repasto fúnebre, a náusea;/ parentes intratáveis, querem mobilar o teu mundo interior, como uma velha/ carripana funerária que atravessa a povoação empurrada por prolongados gemidos,/ deixando fundos traços na lama. deitadas ao sabor/ da corrente – como se petrificadas – as vacas. a sirene.

se já estou morta, porque é que não se lembram de mim?/ pergunta ela à filha, e também à mãe./ e eu, eu sonho que estou na casa ao lado, a modo que encastrada na parede da nossa casa de madeira. de moscas é um fartote, por todo o lado, aqui. e o calor que/ faz!/ a noite está a chegar, mãe!/ a casa – é um útero, onde todos nós fomos esquecidos./

vêm da Polónia, estão para chegar os medicamentos que nos foram destinados. eu/ não sei/ se já é perigoso ou ainda/ não./ quais os espaços interiores que já estão ocupados, que alimentos(/ podemos ainda encontrar na nossa casa/ sem culpa? e a tua mão, o que toca?/ e são ainda livres,/ as lágrimas?

uma foto: dois guerreiros, abraçados,/ dormem numa vala, mas vivos/  uma cova retangular que lembra/ um caixão, e que só as suas respirações/ aquecem.

identidade – é um apelo à ordem? em/ nome de quê/ te censura o outro?/ ou é um sussurro – secreto, íntimo,/ preciso – vindo das profundidades/ interiores,/ sozinho na disputa consigo mesmo?/ e que escrita pode ser esse sussurro?/

a língua distorce-se e escarra/ qualquer coisa de aderente./ o mundo emudece/ num minuto/ ressonância das armas pesadas.

a sirene/ apanhou-nos no meio da rua. o meu/ filho/ ficou de repente tão adulto, tornou-se/ tão pequenito…

vim visitar o meu amor na cave / ao tempo que farta/ que se mantém lá deitado

não consigo que saia/ desse subterrâneo/ dou-lhe uma festa na cabeça

digo-lhe: não tenhas medo, sai daí/ por amor da santa, está tudo vivo/ lá fora o mundo está tão bonito!

os lilases estão a florir/ o vizinho do pátio está novamente a/ reparar o seu carro/ eu e o meu filho ainda agora/ jogámos à bola aqui mesmo por cima da/ tua cabeça

amor, acorda/sai deste buraco/ tens de te apressar a respirar/ temos três horas inteiras/ antes do toque de recolher

claramente, a minha língua já não é “a/ minha língua”/- desfigurada, ocupada

a alguns/ repete – através de bocas secas/ e tenebrosas:/ mato-te, aí onde estás,/ a outros/- vou-te pôr daqui para fora.

é como se o meu filho deixasse de ser/ uma criança./ agora ele quer matar/ quer matar os soldados russos -/ é para rir e não é para rir,/ é a fingir e muito a sério.

com os seus blocos de construção/ magnética/ construiu um sistema anti-mísseis/ vou envenená-los, diz,/ trancá-los no armário atrás de espigões/ de ferro

noite que os mísseis atravessam.

noite pejada de gritos, vivos./ fotos esvaziadas de tudo,/ nem de perto ou longe, e até os pães que/ aqui/ desenformamos em fornos sombrios/ guincham de ódio.

 … e dormir na tua própria cama/ parece-te um luxo,/ poderias lá tu suspeitar, antes./ um luxo – anotar qualquer coisa/ tranquilamente,/ surpreenderes-te a pensar./ o luxo da/ calma./ o luxo de desdobrar os pensamentos. o/ luxo de escrever./ o luxo de poder definir.

o luxo de respirar…

os vínculos não se reflectem. a passagem/ para o mundo do convívio/ é cada vez mais estreita./ o corpo incha/ cada vez mais sem razão/ e de novo – como na infância – cresce/ durante o sono e/ tomba pelas escadas.

agora já não acredito em mais nada/ além dos poemas/ às gentes com dentes maus/ se a palavra lhes é viva vejo-a/ na forma como sorriem

“hoje eles fizeram explodir a barragem
vínhamos a correr para o abrigo
já que estávamos nas catacumbas,
cortei as unhas ao meu filho”

a noite – é uma contração,/ o seu ritmo

nunca mais tu dirás «o orgasmo/ é uma explosão»

nas escolas destruídas/ o menor vestígio conta/ as suas cinzas e o seu giz, as suas/ bibliotecas ardidas, onde/ livros russos arrefecidos são devorados/ pelas toupeiras da história

… o mundo interior – é/ uma lança peluda/ a remexer nas entranhas/ ou/ um louco abecedário sonoro/ que pisca e pisca?

III

canção de embalar para o meu filho/ durante o ataque aéreo:

dorme meu querido/ estamos seguros debaixo da terra/ a guerra não durará sempre/ todos os impérios apodrecem

e nós, continuaremos/ fortes e perenes

levam-nos, os espíritos da noite/ embrulhados numa manta, para o/ estranho jardim/ das visões nocturnas, e o nosso mundo/ mais exaltante/ autónomo

tu és a minha armadura/ e eu sou a tua armadura/ o amor

olha como treme a vela,/já dizia a minha avó:/a luz acalma

possamos nós ter sempre/ água limpa/ e bolachas açucaradas no nosso saco de/ mantimentos/ dorme meu querido

não há nada explodir não é a/ trovoada/ é só o meu coração a bater perto do teu/ neste canto sob o muro de segurança

num país onde cada canto subterrâneo é habitado/ onde todos são agora como uma família

dorme

os impérios apodrecem

até os animais e os insectos os detestam/ vê como todo ambiente se defende/ a energia a terra e a água/ o vasto mundo vivo

o mundo/reduziu-se à tua boca/ virada do avesso/ assim de dentes/ esmagados/ e de coroas/ espalhadas/ nos lençóis de outono

e às ruas quem as comeu,/ as ruas pejadas de crateras?

estes novos/ chamam/ por aqueles que já lá não estão

desde o subsolo outros/ respondem-lhes

sem nome sem sepultura

os seus fluidos fundidos no tempo

e murmuram para os novos enquanto/ estes se fundem/ quem está aí/ quem está aí?”

se ao menos o mundo inteiro se/ levantasse por nós/ em vez disso jazem amolecidas/ pelo calor dos seus apartamentos/ ah a satisfacção pré-melancólica/ com que protegem o seu mundo/ parasitário

o que é se interpôs no caminho deles?/ apetece-me vomitar

quantos meses de guerra já?/ não sei. não sinto o tempo a escorrer./ o nosso gato morreu hoje./ guinchou… pra depois congelar/ como falar sobre isso? eles vão dizer-nos:/ “que sorte,/ só perderam um gato”.

encontrei uma réstia de pele e de pêlo/ debaixo da mesa/ aconcheguei-me a ela e chorei

IV

durante um ataque de mísseis sobre kiev/ um leão do zoo esborrachou/ o seu focinho contra as grades/ da sua jaula

de tão/ assustado estava/ quanto/ de horror há nesta história?

1) um leão num jardim zoológico, no/ século XXI/ 2) um leão e muitos outros animais/ enjaulados, presos na armadilha desta/ guerra,/ queimados vivos/ 3) o focinho do leão esconde um rosto/ 4) demasiada gente só o descobriu/ agora, neste acto

animal vitruviano, iodo, sangue de/ golfinho inventa-me um nome-ruína/ tão enganador como a hospitalidade

aqui crepitam as fogueiras de livros/ e exércitos de guerreiros virtuais/ ao longo das estradas/ o filho que lhes é comum/ agarra-se ao seu multicorpo com/ laçarotes de carne/ na sua boca – um segundo maxilar

ele só bebem o leite/ subterrâneo/ e também se me não despega o cheiro do/ subsolo

a água do Mar Negro cujas vagas/ parecem crescer, as suas/ lareiras escarlates

no nono mês da guerra, a minha/ glândula lacrimal inflamou-se/ agora uma lágrima escorre/ constantemente de um dos meus olhos/ talvez (como pensava diderot)/ os nossos órgãos e partes do corpo/ sejam como animais separados?/ é o que acontece no meu olho/ – é autónomo, faz/ o que lhe passa pela bolha./ e se ele quisesse dar à luz?/ também no olho/ rebentam as águas?/ o ecrã do smartphone pressionado/ contra a retina acaba por ver…/ proteína borbulhante a que/ guarda a minha visão/ como um sonho dentro do sonho/ uma multiplicidade de olhos/ no seu caldeirão/ lacrimal

és outro, e encontras-te no outro./ todo o masculino em ti é frágil,/ tímido, olho as tuas mãos:/ como conseguirão elas/ segurar uma arma?/ (dormes/ agora, por ti, sei:/ dois gigantes no velho cais/ guardam a aurora)

canta: …/ por uma noite gelada/ vivemos com ouriços e toupeiras/ no seio da terra…/ mas há-de o sol nascer – e libertará/ o sangue das sanguessugas/ que gera os homens – e no rosto/ das mulheres irá o sol/ levantar-se – para que enfim/ nos lavemos do nosso aparecimento/ e do nosso desaparecimento/ e vingará o sol para que eu possa/ voltar para casa e cobrir/ o túmulo maternal dos meus entes/ queridos merda/ há-de nascer sim o sol para que homens semi-/ -transparentes saiam de novo/ das mulheres e se veja/ nos seus prateados sistemas arteriais/ que as balas serpenteiam/ e misturam com as redes venais/ nos seus corações/ onde as ilustres mães/ bordaram/ cruzes pretas e vermelhas/ na camisa-do-mundo

… por uma noite gelada/ vivemos com os ouriços e as toupeiras/ no seio da terra…

(tradução de AC)

 

GUERRA AÉREA E LITERATURA, de W.G. Sebald

A guerra de bombardeio era a guerra pura, escancarada. Contrariando qualquer razão, seu desenrolar faz transparecer que, como Elaine Scarry escreve em The body in pain, um livro particularmente perspicaz, as vítimas de guerra não são um sacrifício necessário no caminho para se alcançar um objetivo, seja ele qual for, mas sim, no exato sentido da palavra, são elas próprias esse caminho e esse objetivo. Chamejando por 2 mil metros céu adentro, o fogo arrebatava o oxigênio com tamanha violência que as correntes de ar atingiram a força de um furacão, e trovejavam como órgãos poderosos cujos registros tivessem sido acionados ao mesmo tempo. Esse incêndio durou três horas. No seu ponto culminante, a tempestade levantou frontões e telhados de casas, revirou pelo ar vigas e outdoors inteiros, arrancou árvores do solo e açoitou as pessoas em fuga como se fossem tochas vivas. Por trás de fachadas que desmoronavam, as chamas atingiam a altura dos prédios, rolando pelas ruas como uma torrente numa velocidade superior a 150 km/h, e rodopiando em ritmos bizarros pelos espaços abertos, como cilindros de fogo. Em alguns canais a água incandescia.

OLHANDO O SOFRIMENTO DOS OUTROS, de Susan Sontag

Imaginemos, portanto, um conjunto de fotos avulsas retiradas de um envelope que chegou no correio daquela manhã. Elas mostram corpos lacerados de adultos e crianças. Mostram como a guerra despovoa, despedaça, separa, arrasa o mundo construído. “Uma bomba arrombou a parte lateral”, escreve Woolf, a respeito da casa de uma das fotos. Sem dúvida, a paisagem de uma cidade não é feita de carne. Porém prédios destroçados são quase tão eloqüentes como cadáveres na rua. (Cabul, Sarajevo, Mostar oriental, Grosni, 6,5 hectares da baixa Manhattan depois do dia 11 de setembro de 2001, o campo de refugiados em Jenin…) Olhem, dizem as fotos, é assim. É isto o que a guerra faz. E mais isso, também isso a guerra faz. A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta. Não sofrer com essas fotos, não sentir repugnância diante delas, não lutar para abolir o que causa esse morticínio, essa carnificina — para Woolf, essas seriam reações de um monstro moral. E, diz ela, não somos monstros, mas membros da classe instruída. Nosso fracasso é de imaginação, de empatia: não conseguimos reter na mente essa realidade.

As fotos traçam rotas de referência e servem como totens de causas: um sentimento tem mais chance de se cristalizar em torno de uma foto do que de um lema verbal. E as fotos ajudam a construir — e a revisar — nossa noção de um passado mais distante, graças aos choques póstumos produzidos pela circulação daquelas até então desconhecidas. Fotos que todos reconhecem são, agora, parte constituinte dos temas sobre os quais a sociedade escolhe pensar, ou declara que escolheu pensar. Essas idéias são chamadas de “memórias” e isso, no fim das contas, é uma ficção. Em termos rigorosos, não existe o que se chama de memória coletiva — parte da mesma família de noções espúrias a que pertence a culpa coletiva. Mas existe uma instrução coletiva.