Maria João Cantinho
Diz-se que há dezassete espécies de figos na ilha.
Era bom que se conhecessem os seus nomes,
diz para si o homem que caminha ao sol.
Walter Benjamin, Imagens de Pensamento
É ASSIM QUE COMEÇA o texto «Ao Sol», que integra a obra onde podemos encontrar mais testemunhos da passagem de Walter Benjamin pela ilha de Ibiza, onde esteve por duas vezes: em 1932 (de 19 de Abril a 17 de Julho) e em 1933 (entre Julho e Setembro), a preparar aquele que seria já o seu exílio definitivo, fugindo da Alemanha e da ascensão de Hitler ao poder, em Janeiro de 1933. «O homem que caminha ao sol» pode bem ser o próprio filósofo, aludindo às suas longas caminhadas.
Pode ler-se, numa carta que escreve ao seu amigo Gershom Scholem, datada de 22 de Abril de 1932 (Benjamin, Correspondance 1929-1940), que embarcou no navio «Catania», tendo chegado à ilha em meados de Abril. Nessa viagem a bordo do navio, Benjamin conheceu o capitão e ouviu as suas histórias, que lhe serviriam de inspiração para os seus próprios contos (Benjamin, Rastelli raconte…et autres récits, 1987). E, em homenagem à ilha escreveu «Sequência de Ibiza», que integrou em imagens de Pensamento.É um conjunto de nove textos breves, nos quais ele começa a trabalhar desde que aí chegou e que foram, primeiro, publicados no Frankfurter Zeitungde 4 de Junho de 1932, quando Benjamin ainda se encontrava em San Antonio.
O seu olhar de viajante descobre uma beleza ainda intacta na ilha, onde a vida dos habitantes obedecia a um ritmo arcaico, o que contribuiria para transformar a ilha num lugar eleito por artistas e intelectuais estrangeiros que aí se reuniriam e conviveriam, transformando-a num lugar utópico à altura. Nos seus Diários de Viagem,Walter Benjamin descreve-a, nas suas várias vertentes, o que nos permite acompanhar as suas impressões mais marcantes. “As primeiras imagens que suscitam reflexão em San Antonio: os interiores que se abrem por detrás de portas com cortinas de pérolas de madeira presas às ombreiras. O branco das paredes ofusca, mesmo na sombra”. (Benjamin, Diários de Viagem).
Benjamin ficou muito impressionado com a arquitectura simples das casas da ilha e também com o modo de vida dos ilhéus. Era habitual fazer longas caminhadas, sozinho ou com os seus novos amigos, como Jean Selz ou Paul Gauguin (neto do pintor), que decidira fixar-se na ilha. Jean Selz esteve muito próximo de Benjamin, nesses dois anos, tendo-o ajudado a traduzir Infância Berlinensepara francês.
Numa carta enviada à sua amiga Gretel Karplus, em meados de Maio, Benjamin descreve a sua vida tranquila em Ibiza, numa casa cuja janela dá para o mar e sobre uma ilha rochosa, em que o farol lhe ilumina a noite. Benjamin conta-lhe também que se levanta às 7 horas da manhã e banha-se no mar (Benjamin, Correspondance 1929-1940). Após um banho de sol, dedica-se à leitura e à escrita, até à hora de almoço. A luminosidade da ilha e a sua tranquilidade atenuam-lhe o estado melancólico em que chegara, proporcionando-lhe um estado de espírito mais propício à escrita. O convívio com os seus novos amigos também lhe foi salutar nesse período.
Na companhia da família Noeggerath, instalado em San Antonio, escreve Crónica Berlinense(que é o fermento de Infância Berlinense), Espagne 1932,o texto Ao Sol,a Sequência de Ibiza,um texto sobre a astrologia, Sur l’Astrologie,e outros textos curtos que serão incluídos em Breves Sombras II, Auto-retratos do Sonhadore Imagens de Pensamento.Redescobre, também, o prazer de narrar e começa a escrever histórias que são inspiradas pela sua viagem a Ibiza e que têm como protagonistas as pessoas que ele acaba de conhecer na ilha. Podemos também ler o seu Diário de Viagem,onde registou as sua impressões sobre a ilha, nos seus mais variados aspectos, desde a economia e a agricultura, a arquitectura e o modo de viver dos seus habitantes.
Durante os três meses que aí passou em 1932, experienciando uma vida simples e longe da civilização, em contacto com uma natureza privilegiada, Benjamin conheceu um estado de tranquilidade que não conhecera na vida que levara anteriormente.
Como é sabido, o mito internacional de ibiza foi criado nos anos 30, por intelectuais e artistas que fizeram da ilha um espaço alternativo, onde era possível escrever e pintar livremente, banhar-se nu, fumar haxixe e sentir-se próximo de um paraíso.
É preciso não esquecer que, para além de W. Benjamin, a ilha foi visitada por um vasto número de jovens que aspiravam a ser consagrados artistas e que professavam ideais anti-burgueses (Valero, 2003), como, por exemplo, Albert Camus, Jacques Prévert, Gisèle Freund e muitos outros. O interesse pelas ciências ocultas, pela astrologia, pelo ocultismo e pelas religiões orientais era também uma das vertentes que contribuía para o mito de Ibiza. Foi precisamente por essa altura que Benjamin redigiu o texto Sobre a Astrologia.Assim, perto de um mar transparente e sereno, numa casa solitária sem electricidade nem água corrente, Benjamin também contribuiu para esse mito de Ibiza.
Como releva Vicente Valero (Valero, 2003), um dos grandes temas ibizianos, nas suas narrativas, é precisamente a forma como modernidade e primitivismo se entrosam na ilha, o que provoca o fascínio do filósofo. Benjamin renunciava à descrição geral do diário de viagem para a substituir por algo mais complexo: «a narração com uma estrutura tradicional, em que o viajante conta o que os outros lhe contaram, e onde é oferecida uma grande quantidade de informações sobre a viagem e o lugar da viagem.».
Durante esse período ibiziano, múltiplas foram as suas leituras, que o inspiraram: de Stendhal a Trotsky, André Gide, Proust, entre outros. Foram leituras feitas numa atmosfera tranquila, sem a urgência habitual de uma recensão jornalística. Era de tal modo favorável que Benjamin pensou prolongar a sua estadia em Ibiza. Todavia, as suas obrigações em Berlim exigiam a sua presença. Como escrevia a Scholem, a 10 de Maio, «raros são os lugares onde se tem a possibilidade, como aqui, de viver numa paisagem esplêndida, e em condições suportáveis, por 70 ou 80 marcos por mês.» (Valero, 2003).
Encontramo-lo a trabalhar intensamente nas primeiras semanas do mês de Junho, pois ele antecipava para breve a sua saída da ilha. Porém, com a chegada do Verão e das longas tardes à beira-mar, juntava-se aos Noeggerath e a uma figura misteriosa, que se dava pelo nome de Jokish, reunindo-se no bar do irmão de Jean Selz. Passa os últimos dias na companhia do casal Selz, de quem se tinha aproximado e acaba por celebrar o seu quadragésimo aniversário na ilha.
A inquietação de Benjamin nas últimas semanas desse primeiro período prendia-se à presença de uma mulher por quem ele se havia apaixonado. Tratava-se de Olga Parem, que viera até à ilha a seu pedido. Era uma alemã-russa muito atraente e viva, que Benjamin já conhecia desde 1928, por intermédio de Franz Hessel, com quem traduziu Proust. Mais tarde, Olga Parem relatou a Scholem como havia passado belos dias em Ibiza, recordando o «riso mágico» de Benjamin (Scholem, 2001). Porém, os belos dias conheceram um revés quando ele a pediu em casamento e ela recusou.
A segunda estadia de Benjamin em Ibiza, durante os meses de Verão, de Julho a Setembro foram muito menos radiosas e correspondem a um período em que Benjamin preparava já a sua saída da Alemanha. Após a subida de Hitler ao poder, em Janeiro de 1933, viu-se afastado da imprensa alemã e iniciou uma nova fase da sua vida como exilado. Fixar-se-ia em Paris, a partir daí. No ano de 1933 já não encontrou as condições de alojamento favoráveis que encontrara no ano anterior. Devido ao facto de haver muitos estrangeiros na ilha, a vida encarecera e Benjamin ganhou, devido às condições em que vivia, num moinho isolado e sem janelas, numa degradação da sua situação económica, a alcunha de «miserável». Trabalhou incessantemente o seu manuscrito «Infância Berlinense», que traduziu com Jean Selz para francês. Com o pseudónimo de Detlef Holz publicou cinco capítulos de Infância Berlinenseno Frankfurter Zeitung.Tinha ainda outro pseudónimo, C. Conrad, que lhe permitiu publicar também no Vossichen Zeitung. A maior parte destes capítulos foram escritos em Ibiza. Foi ainda em Ibiza que conheceu aquela que foi provavelmente o último amor: Anna Maria Blaupot Cate, pintora, nascida na Holanda.
Doente (com malária) e apaixonado, Benjamin deixa, em Setembro, Ibiza para sempre. Fixar-se-á em Paris, o seu derradeiro exílio. Mas foi certamente da sua infância e de Ibiza que guardou as melhores recordações.