Florindo Mudender
PELO FERVOR COM QUE A TERRA RESSEQUIDA DESEJA ÁGUA e pela alma errante de um povo nómada Pelo comboio que partiu ou se apresta a chegar e as maletas dos imigrantes nas plataformas do apeadeiro Pelo deserto que se expande
Pela luz que atravessa o vidro ou a água e pela torção da luz ao atravessar a água ou o vidro Pela sombra móvel que vejo através de um vidro opaco Pelas misteriosas escrituras nas folhas das árvores Por um campo de cereais maduros que balançam ao vento Pela forma mutável e misteriosa da água Pela água fresca das ânforas Pelos jacintos de água e os papiros e pelo lodo onde floresce o lótus
Pela terra rachada como se para deixar passar a água e depois a desejar desesperadamente Pela água salobra dos poços nas bermas das estradas áridas e pela erva esparsa e atrofiada nas proximidades dos desertos
Pelas coisas que sem que eu dê por isso pesam sobre mim Pela sombra que cada coisa projecta Pelo acumulo de silêncios e sombras que eu sou Pela chave que abre e fecha uma porta e pelo sonho que é uma misteriosa forma de vigília
Pelo bosque sombrio e o silêncio na igreja do eremita Pela oração do peregrino Pelo incensário apagado no templo de uma aldeia abandonada
Pelo eco longínquo de uma tarde em que os meus dedos se afincaram sobre as arestas dos dados de mesa Pelo dado que sou de um jogo cujas regras desconheço Outra vez pelo silêncio e pela sombra na concavidade da minha mão Pela conta de vidro aonde vi reflectida a luz e pela luz que também me atordoa
Pelas coisas silenciosas e paradas que me esperam nos quartos escuros Pela janela gradeada através da qual vejo esquartejada a rua à minha frente depois os limites da cidade murada e ainda assim inúmeras vezes sonho com o infinito
Pelo breve instante em que uma gota cai e me revela a eternidade
Pelos animais mortos provavelmente de sede ou de fadiga e os alvos esqueletos
desses animais nas margens dos caminhos áridas Pelos bazares nos cruzamentos das estradas
Pelo leão de pedra agachado à entrada da cidade e o exército de terracota em estado de alerta permanente Por tudo o que se assemelhe à adversidade do clima ou à hostilidade de outros povos as coisas que levaram ao êxodo ou à extinção de um povo Pelos cacos de vasos de barro queimados e pelo ocasional pedaço de metal não polido Pelos rabiscos gravados nas paredes das grutas Pela máscara de madeira ou de bronze e o rosto dessa máscara Pelo obelisco quieto e vertical Pelas ruínas da mais antiga povoação humana o lugar onde um povo sonhou trabalhou prosperou e vislumbrou a felicidade Por todos os vestígios de um povo extinto e todavia misterioso:
Este foi o lugar do templo
E este o do celeiroE aqui se moldava o barro E aqui madurava o vinho
Em barricas de barro queimado
Pela noite escura e calorosa e os cantos e a dança e o fogo nessa noite Pelos temores e as ansiedades e todos os padecimentos de um povo que são os de todos os povos
Pelas coisas compactas: o metal ou a pedra dura e as coisas dispersas a crista volante das dunas no vasto deserto o eco de um grito na noite e a sombra Pelo rio subterrâneo
Pelos códices misteriosos no papiro que é a minha mão ou qualquer folha Pela página quebradiça de um livro antigo Pela folha branca e pela ponta mais afiada de um lápis Pela chama inquieta da vela quando lá fora o vento sopra e logo começa a chover e dentro de mim se eleva a humidade e tudo se encolhe Pelas coisas simples do quotidiano Pela imagem e pela sombra da imagem Pela palavra pronunciada e pelo eco da palavra calada Pela estrada e também pelo atalho
Por quem parte e também por quem espera Pela porta que gira o mesmo para entrar e o mesmo para sair Pela tâmara Pelo limão e também pela romã
Por uma rua escura e animada nos arrabaldes de uma grande cidade Pelo eco de uma voz sumida pelo calor dos grandes fornos e as altas chaminés da velha fábrica abandonada Pelo carvão moído e pelo pedaço de cais enferrujado no pátio dessa fábrica
Pelas embarcações afundadas em alto mar ou junto ao cais Pelas conchas vazias pelo ouriço-do-mar e a estrela-do-mar pelas casas abandonadas Pela ave silenciosa e quieta pela rua molhada de manhã e o canto rouco e o desajeitado bater de asas do condor Pela cúpula de uma mesquita Pelo milho pelo milho e pelo incensário Pelo pequeno altar o lugar das oferendas no meio do bosque Pelo sabor ancestral da água e pela sua limpidez e por todas as formas de luz Pela turbidez do horizonte e o fumo das chaminés dos navios perdidos no horizonte Pelo teu silêncio e pela auréola que te rodeia
Pela savana incendiada numa tarde de verão e o calor sufocante da voracidade da chama atiçada pelo vento pelo fumo branco e espesso e o crepitar dos arbustos e o cheiro a animais queimados
O ENIGMA
Eis-nos outra vez face ao vaivém monótono do pêndulo do relógio É a luz ténue que revela a aspereza das superfícies lisas Os desvios e os desníveis dos caminhos rectos e planos Que revela a parte maciça das coisas ocas e aproxima o eixo dos elementos dispersos É esta a luz que perturba o sono Que me revela a cara das moedas Que me tira da tristeza embora não me leve à alegria Que salta das paredes caiadas
Não vejo o estático nem o móvel Não vejo o preto não vejo o branco mas sei que estão lá Esta é a luz que me deslumbra… Agora aproximas-te e vens sentar-te ao meu lado… mas tão pouco isso decifra o enigma