MANUEL TEIXEIRA GOMES: O VIAJANTE VAGAROSO

Maria da Graça A. Mateus Ventura

COMERCIANTE DILETANTE, AUTO-FICCIONISTA E POLÍTICO, Manuel Teixeira Gomes, oriundo de uma família burguesa e cosmopolita portimonense, construiu uma vida de exílio constante entre o negócio e o ócio.

Boémio de vocação, republicano e ateu por convicção, hedonista, amante das belas artes, da literatura e da Natureza, revelou na sua obra literária a intensidade do seu olhar sobre o mundo dos outros como se se tratasse de um teatrinho onde ele era actor e espectador.

Nas Cartas Sem Moral Nenhuma(1903), escritas quando ainda não se recompusera do afastamento dos círculos intelectuais de Lisboa e Porto, forçado pelos pais a regressar a Portimão, expressou o seu desalento por viver longe da «civilização» no «vil escaninho do mundo, que a arte não alumiou nem alumiará nunca…»: «Empapa-me o espírito a impressão – o terror – de que nunca mais deixarei este buraco do mundo, lugar sem interesse para ninguém, longe da tangente de toda a civilização. Que peregrino acaso, que naufrágio, que desventura, poderia trazer aqui a qualquer das mulheres que eu amo, tão dispersas e absortas no que a vida oferece de melhor; e onde estão esses senhoris retratos de Piero della Francesa, ou essa orgulhosa catedral deslumbrante, em cuja vista a mais negra solidão se reconforta?» (Cartas Sem Moral Nenhuma).

Figura 1. Vila Nova de Portimão, 1907

Assim desventurado, encontrou lenitivo para a sua solidão: os livros que guardou no seu escritório de Portimão, a Natureza – verdadeira paisagem grega – em toda a sua plenitude sensorial, e as viagens luminosas no Mediterrâneo, já que as outras, para norte, eram de negócios e em países sombrios. A memória desta ecotopia sobreviveu ao exílio e a ela regressa com nostalgia. O crepúsculo, em Janeiro: «Extraordinário, este céu ao pôr-do-sol! Todo coberto duma colgadura de púrpura, que parece arrastar-se por cima da ponte, mas rasgada a espaços sobre um fundo longínquo de porcelana verde. O rio todo escorrendo em vivo sangue…»; o luar, sobre o rio: «À noite, na ponte, com a lua cheia, o ar sereno, uma grande paz na água do rio, sossego no mar calado, e pequeninas nuvens, farrapos de caxemira branca, a deslizar brandamente no aveludado azul celeste escuríssimo…»; mas também a Primavera com o rebentar das vinhas e das figueiras e o céu matinal e crepuscular: «… céus ácidos; manhãs frígidas com tintas de limão no horizonte; poentes saburrosos, empastados de papas moiras, a escorrer sangue de morcelas…» (Regressos,1935).

Tudo na Natureza o inspirava, a fragrância do tomilho e do funcho, até o calor excessivo. Nos dias em brasa sonhava com a delícia de se sepultar, vivo, «dentro de uma amorangada melancia…» (Agosto Azul,1903).

«Extraordinário, este céu ao pôr-do-sol! Todo coberto duma colgadura de púrpura, que parece arrastar-se por cima da ponte, mas rasgada a espaços sobre um fundo longínquo de porcelana verde. O rio todo escorrendo em vivo sangue…»

Figura 2. Praia da Rocha.

No estio, valia-lhe a presença do mar sem o qual não conseguia viver nem que fosse para mirar um singelo luzir azul por entre o arvoredo ou refrescar o olhar na transparência tranquila do rio que avistava de sua casa: «Eu queria que Vossê visse ontem, do mirante do meu jardim, quando enchia a maré, um iate que largava o pano, pronto a partir. Era um barco novo todo pintado a verde-maçã com filetes brancos ao longo da amurada, acharoado de verniz fresco, leve, gentil, a arqueada curva do casco saltando na superfície polida da água e o seu lindo nome “Cysne” gravado a oiro em cartela cinzenta – com um i grego para o fazer mais sinuoso – a mover-se quási na volta da popa. Os rapazes que tomavam banho no dique e que se atiravam nus, em séries de palhaços, da primeira ponte abaixo, trepavam-lhe pelo costado e outra vez em séries de palhaços deitavam-se à água da ponta do gurupés…» (Agosto Azul)

Desconcertado com o mundo, na inquietação da sua juventude, ia «lendo todos os filósofos em série cronológica, fumando cigarros da Baía enrolados em folha de milho e com tabaco que parecia pólvora…» (Regressos). Gostava de beber champagne, de tomar café e de fumar (já o fazia às escondidas na casa da avó, em Ferragudo: «O menino já fuma?» (Inventário de Junho, 1899). Pequenos vícios que somava a outros igualmente inofensivos para a época. Fumava para passar o tempo ou para saborear, na tolda dos navios, o espectáculo da partida (Novelas Eróticas,1935). Durante as suas viagens era frequente as tabacarias enviarem-lhe cigarros para o estrangeiro dado que as suas estadas eram prolongadas. Em 1907 escreveu de Eaux de Mondariz (Galiza) à Tabacaria Mónaco (Lisboa) dizendo: «Não me mande mais cigarros porque não chegam». Em Amsterdão, tinha ele 25 anos, enquanto esperava no escritório do Sr. Krater, que «fervilhava em toda a classe de negócio que presumia lucrativo», sentado «numa das vastas poltronas que rodeavam o fogão, sopeava a sua impaciência fumando um negro e húmido charuto de Borneo e tomando aos pequeninos goles um grogue quente de velhíssimo Schidam» (Novelas Eróticas).

Muito mais tarde, a bordo do vapor russo Tchikachoff, que o levava de Esmirna a Constantinopla, foi arrebatado por uma paixão súbita por uma russa, «criatura de lenda, figura de Brunehilde» e à noite ficou «ardendo em luxúria, e fumando sem cessar entretenho a minha insónia passeando no convés até quase de manhã» (Novelas Eróticas). Daí o seu gosto bem burguês pelo coleccionismo de tabaqueiras (Miscelânea,1937).

Figura 3. Postal de Constantinopla, 1905

Fumou sempre, até morrer. Já sedentário em Bougie, confessou a José Osório de Oliveira uma das razões pela qual lhe agradava esta cidade marítima: «Acresce que em parte alguma se prepara melhor café, e se fumam tabacos melhores nem mais baratos do que na Argélia» (Colóquio Letras14, 45). Em 1939 despediu-se do jornalista Norberto Lopes, no final do seu primeiro dia de visita, no Hotel de L’Étoile, deste modo: «–Venha amanhã mais cedo, à hora do meu charuto. Fumo sempre um charuto depois do jantar. Sinto que me faz mal, mas sabe-me bem. Já agora, não quero separar-me deste amigo fiel, que me faz todos os dias tão boa companhia» (O Exilado de Bougie). Fumava então Melia, tabaco fabricado em Argel.

O exercício da diplomacia em Londres (1911-1923) e a presidência da República (1923-1925) foram 15 anos de «cativeiro». Demitiu-se de Belém e saiu de Portugal em 17 de Dezembro de 1925 com destino a Oran, aos 65 anos, para reconquistar a liberdade. Viajou pelo Mediterrâneo, durante seis anos, por ambas as margens, ia a Paris e regressava invariavelmente a Tunes ou a Argel, nunca a Portimão. Nas cidades onde permanecia algum tempo, por vezes vários meses, alugava posta-restante. Tornou-se epistológrafo compulsivo.

A leitura da sua escrita memorialista aproxima-nos do homem cujo deslumbramento constante pela arte e pela vida o levou a um exílio nómada no espaço mediterrânico que desde muito cedo desvendou. A sua obra literária, de carácter epistolar, revela uma “irresistível e corrosiva saudade” da língua materna. São cartas que nos reenviam para o autor, não pelos sinais implícitos, mas pelo carácter assumidamente confessional.

Tal como os viajantes europeus do seu tempo preferia viajar só, sem plano e sem guia. Os companheiros distraíam-no, impedindo-o de «ver» e de se deter quando a imaginação fluía e o embalava. Aliás, o tema da solidão é recorrente nas suas cartas de exílio. Dizia que quando se «soltou de Belém» foi atraído pela miragem do anonimato e decidiu «voltar a correr mundo, abrindo o último capítulo da vida em termos de o tornar aprazível despido de todo o género de ambição e vaidade, mundana ou espiritual» (Miscelânea). A solidão não fazia dele um melancólico, ao contrário, vivia a vida festivamente e era senhor do seu silêncio.

No seu exílio voluntário visitou apenas lugares já conhecidos para tecer um diálogo consigo próprio sobre as impressões de outrora e as actuais. Julgava, então, estar preparado para a «existência solitária», mas, a certa altura, sentiu necessidade de saber dos seus amigos e de com eles comunicar através da escrita, até porque sempre sofrera da «fúria epistolar»: «Dias há em que, mesmo na solidão mais orgulhosa, a alma, no seu profundo recolhimento, parece que suspira e anseia pelo som de uma voz amiga» (Agosto Azul, 1930). Escolhia os destinatários, entre a «lista dos predilectos», consoante o «desabafo». Escrevia abundantemente aos seus amigos porque isso o entretinha e, porventura, os entreteria também (Cartas a Columbano,1932).

Sem residência fixa, viajando sem programa prévio, a posta-restante era a «melhor e mais segura direcção a dar à correspondência» (Miscelânea) e, na verdade, as numerosas e frequentes cartas dos seus amigos seguiam-lhe o rasto.

O vagar, a lentidão, o silêncio, a solidão, o anonimato propiciam a fantasia e a rememoração. A sua escrita epistolar enriqueceu-se nessa perfeita conjugação. O exílio nómada acentuou a sua propensão rememorativa e, em cada lugar, encontrava pretexto para regressar às suas raízes existenciais – a infância, a adolescência e a paisagem algarvia. Escrevia por diversão e prazer. Castelo Branco Chaves num pequeno estudo literário sobre o escritor, disse que «Teixeira Gomes e para ver basta-lhe “imaginar com intensidade”, porque, então, transformados pela saudade e pela fantasia, imagens e sentimentos, seres e coisas ganham o seu valor transcendente e alcançam as mais perfeitas formas para a sua expressão estética» (Chaves, M. Teixeira Gomes, 1934).

Viagens longas e prolongadas, como aquelas que realizou na fase de negociante de frutos secos ou na fase de exílio, exigiam avultada bagagem e um séquito de carregadores. Episódios burlescos e caricaturais que, embora acessórios nas suas narrativas, revelam não só a sua ironia como a sua capacidade de divertir o interlocutor. Uma das suas malas preferidas era a Never Break, nome sugestivo da sua finalidade. Entre os múltiplos relatos das peripécias das suas viagens de vapor no Mediterrâneo e do desconforto do desembarque e até de travessias tormentosas, Teixeira Gomes apresenta-nos a sua «mala grande», a propósito do acidentado embarque no vapor de carga Porto di Savona, em Novembro de 1926, no porto de Livorno, com destino a Túnis, peripécias que dariam «uma boa fita cinematográfica, no género Ridolin»: «A minha mala grande, muito sua conhecida, a «Never Break», sendo comodíssima, pela disposição interior, que permite, quando se abre, usar dela como se fosse um guarda-roupa de moderna construção, tem no entanto seus inconvenientes, sobretudo nas viagens por países pouco habituados a ver semelhantes fenómenos. Imponente no aspecto, desafia a codícia dos carregadores; vazia, o seu peso é respeitável, e cheia, como anda a minha, ultrapassa os cem quilos que um homem forte já com dificuldade carrega às costas; de modo que o galego, disposto a meter a unha só pelo aspecto, quando a sente sobre o lombo, logo imagina que não há dinheiro que lhe pague a penosa empresa de transportar, como um Atlas, aquele mundo esmagador, feito de aço, e sem pega de espécie alguma. Isto move questões, nem sempre fáceis de dirimir, e pedindo, com frequência, a intervenção da polícia» (Miscelânea)).

A mala foi colocada, a custo, no camarote, presa com uma corda a um dos cabides aparafusados no tabique. A tormenta que atingiu o vapor durante a noite provocou uma cena aterrorizadora com a «cacaria partida e móveis em derrocada». No seu camarote, «o monstro [Never Break] soltara-se e investia, furiosa, no propósito de tudo destruir» (Miscelânea).

As travessias de vapor eram pretexto para narrativas fantásticas sobre a turbulência provocada pelas tempestades súbitas, como a que atingiu o Monserratena viagem de Cádis para Tenerife antes de 1903: «De repente o barco teve um estremecimento convulsivo, obrigando o lavatório a cuspir todos os seus frascos e juntamente o estojo de viagem, cujo recheio de vidro e aço espalhou pelo tapete. (…) Eu via agora juntarem-se as formas volumosas – mais volumosas, pesadas e, por assim dizer, brutais – das malas, dos bancos, das almofadas, as espertas facetas dos frascos de toucador que retiniam e rolavam miudamente pelo chão, e, mercê da pontinha de febre que entrara comigo, cada vez mais me enovelava nos cobertores, espavorido com a ideia de pousar os pés no tapete, preferindo a conjectura de me sepultar, inteiro, nas ondas, a expor-me, nu, às gélidas punções de uma tesoura aberta, ou a das puas do cristal estalado das caixas de sabonete… O navio tremia todo, revolvendo os intestinos de ferro, rangendo as articulações, arrastando cadeiras, jogando-se ao mar, ficando, perdido, a popa toda fora de água, exasperado pelo giro dos hélices inúteis…» (Cartas Sem Moral Nenhuma).

Teixeira Gomes era avesso à velocidade. Nunca viajou depressa, preferindo as longas caminhadas ao automóvel e aos aeroplanos. Nem as novas tecnologias da época – os telefones, a tsf, o cinematógrafo – alteraram o seu ritmo.

Para ele, a exploração de um lugar ou de uma cidade como Paris devia ser feita vagarosamente para aprender e apreender todos os detalhes. Demorar o tempo suficiente para ver bem, para conhecer melhor, era a «regra racional das viagens» (Miscelânea). Apreciar de longe a magnificência de um monumento e, devagar, aproximar-se e ir descobrindo os detalhes tinha para si um encanto particular. Mas não só a velocidade era contrária à contemplação e à descoberta, também a proliferação de guias turísticos, que descreviam os monumentos como se fossem catálogos científicos ou meros inventários, minimizavam a fruição da descoberta (Cartas a Columbano).

Nas suas viagens, em Portugal ou no estrangeiro, jantava quase sempre nos hotéis onde se hospedava, o que lhe permitia uma sociabilidade involuntária, por vezes recompensada por inesperadas aventuras amorosas. Sempre que possível, escolhia os hotéis criteriosamente de modo a poder observar, da sua janela, o nascer e o pôr-do-Sol. Em carta ao seu amigo Columbano Bordalo Pinheiro, escrita em Argel em 1928, confessou que gostaria de escrever sobre os quartos de hotel por onde transitou, sobretudo na segunda fase das suas viagens. Embora não tenha concretizado este desejo de modo sistemático, em muitas das suas cartas e também nas narrativas novelescas, identificou os hotéis sempre que tal se lhe afigurava sugestivo ou referencial.

Nas suas viagens por Itália mencionou o Grand Hotel Stella d’Italia, em Florença, o Hotel Isotta, em Génova e, em Pisa, o Hotel Nettuno que lhe mereceu atenção particular.

Em duas cartas dirigidas a amigos mencionou este hotel por duas razões distintas, uma das quais extravagante. De Pisa, contou a Henrique de Vasconcelos que da janela do seu quarto avistava os Tre Palazzi di Chiesa, onde o poeta Shelley morara com sua mulher e um casal amigo antes de morrer afogado. Ao seu amigo F. Mira, muitos anos depois, escreveu de Argel lembrando essa mesma estada em Pisa, narrando agora um episódio cómico em que se envolveu com um chinês que conhecia expressões bem portuguesas… porque vivera exilado em Macau.

Mas não só a velocidade era contrária à contemplação e à descoberta, também a proliferação de guias turísticos, que descreviam os monumentos como se fossem catálogos científicos ou meros inventários, minimizavam a fruição da descoberta

Figura 4. Marseille, La Canebière, Hôtel Noailles, 1914.
CC.BY.NC.SA.2.0.Creative Commons

Em Marselha, a sua passagem pelo Hotel Noailles foi breve pois estava de passagem para Paris. Todavia, ainda teve tempo para visitar o museu de pintura no palácio Longchamp e de se refastelar, «a todos os almoços», com as famosas «bouillabaisses» que rescendiam a açafrão e a lagosta (Miscelânea). Em Dordrecht, na Holanda, refugiou-se secretamente com Camila no Hotel de França (Novelas Eróticas). Era já um hotel familiar, mas as lembranças que guardava eram do romance com a jovem judia.

No Hotel Celeste, em Bouzaréah, escreveu o texto «Batalha» para o livro Regressos. Em Badajoz, muitos anos antes, por ocasião da feira de Agosto, hospedara-se com os seus amigos Della Faille, o pintor Benarus e o jovem Pernes num quarto exíguo do Hotel Central. Já em Bougie, no Hotel de l’Étoile, em 1933, dedicou a António Sérgio o texto «Santiago de Compostela» evocando uma viagem que, em tempos da sua juventude, fizera a esta cidade galega: ansioso por ver a procissão, instalara-se, à pressa, na Fonda Suïsa, junto à catedral.

Em Paris, hospedava-se com frequência no Hôtel Quai de Voltaire, em fren-

te ao Museu do Louvre:  «(…) elegi para meus Paços o velho «Hotel do Cais de Voltaire», de cujos balcões espaçosos se defronta, completa, a soberba e principal fachada do Louvre, e, entre a Ponte Real e a Ponte das Artes, a vista repousa nas águas vagarosas e cristalinas do Sena, deslizando através da verdura dos plátanos e choupos colossais; hotel insigne, ademais, pelas suas tradições artísticas, pois coube-lhe a honra de albergar génios tais como Baudelaire, o Wagner, o Óscar Wilde… Da minha janela via-se nascer o sol – que então ainda se mostrava – entre as torres de Notre-Dame, e transmontar-se para os lados do Bosque de Bolonha, nos inolvidáveis poentes, onde o vermelho-cereja aparecia, coroado de âmbar, em salvas de esmeralda.» (Cartas aColumbano)

Figura 5. O Louvre visto do Hôtel du Quai de Voltaire

O hotel histórico era sórdido e em dias de tempestade Teixeira Gomes, se a ele se acolhia, lá o esperavam «as torturas de uma poltrona, com a elasticidade do cimento armado, e sem dúvida adquirida no espólio da Santa Inquisição» (Cartas a Columbano). Não nutria especial simpatia pelos chineses como relatara a propósito do Hotel Nettuno. O que se segue, a propósito do pequeno-almoço servido no Quai de Voltaire, é ainda mais cómico: «Logo na primeira semana estive para deixar o «Voltaire», porque nesta hospedaria, de ínfima ordem e magnas pretensões, têm o topete de cobrar três francos por cada ovo escaldado, servido ao pequeno-almoço. É verdade que no «Noailles», de Marselha, contavam cinco, mas é o primeiro hotel da cidade, os ovos tinham dimensões que não envergonhavam qualquer galinha decente, e traziam estampados na casca o retrato das mães, além de uma notícia histórica ou biográfica, narrando por datas as passagens principais da sua existência, desde a expulsão do orifício materno até ao banho final na água a ferver. Os ovos do hotel «Voltaire» – a que de bom grado renunciei – não excediam, no tamanho, o máximo que é lícito esperar das acanhadas entranhas de uma pomba, e ressentiam-se da origem chinesa por um fartum especial, que logo denunciava, na sua confeição, a colaboração humana.» (Miscelânea)

O exílio restituíra-lhe a liberdade plena o que lhe permitia sucumbir à tentação da «deambulação estética» e permanecer em Paris, «essa Jerusalém de todos os sonhos românticos da nossa mocidade» (Cartas a Columbano), o tempo necessário à contemplação da arte e à fruição vagarosa sem se deixar contagiar pela «febre do bulevar» (Miscelânea). Durante os dois primeiros meses da sua estada, na Primavera -Verão de 1927, visitava, de manhã, o Louvre e as igrejas e, à tarde, passeava nos cais, jardins, parques e florestas de Saint Cloud, Versailles, Saint Germain e Vincennes.

Numa noite de chuva foi ver a Josephine Baker ao Follies-Bergères, cuja estreia parisiense ocorrera dois anos antes no Théâtre des Champs-Élysées, com uma dança erótica entrando em cena praticamente nua: «Mal tomara assento na plateia, quando aparece em cena a célebre Josefina Baker, inteiramente nua, a dançar, ou a parodiar, com jeitos e esgares de infantil singeleza, uma dança de pretos. Esta Josefina, moça de vinte anos, é uma mulata americana, com feições de branca, muito bem esculpida, cinta fina, seio forte e firme, e umas pernas indescritíveis, que alucinam» (Cartas a Columbano).

Embora Teixeira Gomes se tivesse assumido como mero narrador deste episódio, é flagrante a identificação com o personagem que o protagoniza. Tinha 67 anos, deixara de fumar havia oito meses, ficou tão deslumbrado com o espectáculo que, mal este terminou, dirigiu-se ao bar para tomar um whiskyduplo e acender um charuto de palmo, rememorando «com ardente voluptuosidade as pernas da bailarina».

O seu estado de euforia fê-lo quebrar o jejum que praticava após o «chazinho das 5» e, à meia-noite, ainda se debatia «destemido com uma lagosta ciclópica e mais um pastelão de pato bravo». Ainda teve forças para continuar a noite no Chabanais, o bordel mais luxuoso de Paris que recebia príncipes do mundo inteiro, entre os quais Eduardo VII de Inglaterra.

Figura 6. Postal ilustrado – Bougie, vista do porto e do Hôtel de l’Étoile

Os hotéis do Mediterrâneo eram escolhidos de modo a permitir ver o mar, as montanhas, o nascer e o pôr-do-Sol. Quando Norberto Lopes visitou Teixeira Gomes em Bougie, em 1939, ficou surpreendido por este não ter casa própria. Decerto não conhecia ainda as cartas que o «exilado» escrevera aos amigos. De facto, desde que saíra de Portugal, em Dezembro de 1925, sempre dormira em hotéis ou em camarotes de navios. Em Bougie, em Setembro de 1931, escolheu o Hotel de l’Étoile,sobranceiro ao mar. Quando aí se instalou já tinha 71 anos e estava debilitado. Da janela do seu quarto não via os barcos deslizando no rio Arade, mas um mar tranquilo protegido pelas montanhas da Cabília: «O encanto do mar, só por si, é para mim cada vez mais intenso e já não concebo possibilidade de viver longe dele. Isso contribui imenso para que eu me vá deixando ficar em Bougie, espécie de Sintra à beira de água, porém muito mais acidentada e rica em passeios aprazíveis e perspectivas raras.

Então o panorama que se desfruta da janela do meu quarto é estupendo e não recordo qualquer outro que o supere. A minha janela também deita sobre o único largo que existe na cidade, o qual forma terraço todo aberto do lado do mar e é muito concorrido da gente fina da terra e da forasteira, especialmente do sexo feminino. (…) Mas Bougie é uma terra de eleição e nada se me dava de poder passar aqui o tempo que me resta… para festejar o meu centenário» (O Exilado de Bougie).

Não teve tempo de festejar o seu centenário nem de ir de aeroplano ao Iraque como era seu desejo. Um ano depois, ainda doente, escreveu ao seu amigo francês Phileas Lebesgue lamentando o rigor do Inverno que atingira a Argélia. Não perdera, contudo, a capacidade de se deslumbrar. Estávamos em Abril e nevava ainda. As montanhas da Cabília que se viam da janela do seu quarto estavam tão brancas quanto os Alpes: «Mais quel spectacle prodigieux, féerique, et de tous les jours, qui est le lever du soleil sur ces montagnes! J’en jouis, qu’il fasse clair ou brouillé, de cette fenêtre dont le charme fait beaucoup pour me retenir ici… et à la vie» (Massa, 1976).

Segundo Michel Foucault, a escrita de si atenua os perigos da solidão e o facto de alguém se obrigar a escrever cartas ou cadernos de notas denuncia a necessidade de interlocutor, assumindo-se a escrita como companheiro. Foi o caso de Manuel Teixeira Gomes, exilado do seu país, dos amigos e da família, durante 15 anos.

A sua vida quotidiana, nos últimos anos de vida, era ritmada pelas idas ao Hôtel des Postes, à pastelaria La Corbeille Fleurie, refeições frugais no hotel, um copinho de licor de tangerina, um charuto argelino, a escrita e a leitura da correspondência e dos livros e jornais enviados pelos amigos portugueses. Vida tão vagarosa e solitária quanto as suas viagens.

Foi neste hotel (atualmente património do Estado argelino), onde residiu mais de uma década e do qual não falou, que o nosso viajante vagaroso forçadamente sedentário se finou. A 18 de Outubro de 1941 o antigo Presidente da República Portuguesa, senhor distinto e solitário, hóspede residente no quarto número 13 do hotel gerido pelo casal Berg, morreu, aos 81 anos de idade, quase cego, com problemas respiratórios e cardíacos, acompanhado do seu fiel amigo árabe Amokrane. Foi sepultado no jazigo da família que dele cuidou durante uma década na bonita cidade argelina de Bougie, hoje Béjaïa. Nove anos depois, sua filha Ana Rosa, acompanhada do marido e do jornalista Norberto Lopes, resgatou os restos mortais do homem que dissera que se tivesse que mudar de nacionalidade seria entre os mouros que a procuraria. E assim,  em 1950,  a vila que ele elevou a cidade em 1924, sofreu um inesperado sobressalto democrático que ele gostaria de ter vivido. Curiosamente os argelinos de Béjaïa nutrem ainda hoje um carinho especial pela memória deste homem, amável e de porte distinto, que nunca revelou ser ex-Presidente da República portuguesa.

Manuel Teixeira Gomes na varanda do Hotel L’Étoile, Bougie, 1933. Fotografia tirada por Madame Berg, 14/7/1933, BNP, E 46